Fenda, de Rodrigo Francisco pela Companhia de Teatro de Almada

Domingos Lobo

Fenda reflecte sobre o mundo do jornalismo empresarial

Para além da reflexão sobre a crise do jornalismo, matéria que o autor aborda com assertiva e dialéctica perspicácia, colocando essa análise nas personagens Lourenço, Winni e Catarina, interpretadas, com irrepreensível comedimento e eficácia, por João Tempera, Mina Andala e Maria João Abreu, Rodrigo Francisco dá-nos o outro lado da sordidez desse universo de glórias efémeras, de esplendor e sujeição, dos meios que o capital põe ao seu serviço para que o domínio sobre os imaginários se estabeleça.

Será que o jornalismo precisa da democracia?, interroga-se com impudência Simão (interpretado com acerto por Diogo Dória), o dono da empresa (cujo possui, em paralelo, uma Fundação «caritativa», em Moçambique, como forma hábil de lavar dinheiro). Catarina tem consciência do meio (a televisão) e do jornalismo que nele se pratica, mas é frágil, traz das suas origens uma carga emotiva que a não deixa respirar, atormentada por remorsos, pela morte da mãe que não conheceu, que rejeitou para que esse passado, esse tempo em que as pessoas já nasciam condenadas à miséria, a não impedisse de chegar ao topo da carreira, de ser reconhecida no supermercado.

Com uma relação instável com Winni, que não consegue dominar, Catarina apaixona-se por Lourenço, o filho do patrão. Paixão redutora e impossível, cindida, em arroubo dramático quase camiliano, pelas revelações de Paulo (verdade/mentira? O palco é um lugar de incertezas, diz-nos Jorge Silva Melo) e Catarina envilece, toma consciência de que viveu sempre uma quimera, que o seu passado lhe deixou a vida fendida, existe um fosso entre ela e esse tempo de sombras. Imponderável como a morte dos sonhos.

Simão sabe que o seu domínio é tentacular, que alguns jornalistas são meros artífices do seu poder, outros, descartáveis, e os que sabem demais, como Winni, podem seduzir-se com uma ilusória fatia de poder: As caras conhecidas vão e vêm – nós ficamos, os capitalistas, os que pensam possuir, para sempre, as chaves da usura.

Em Fenda, aparentemente, é o capital que sai vencedor desse jogo trágico: Os funerais sempre me deram uma fome desgraçada, diz Simão, deglutindo, sôfrego, o arroz de bacalhau. Mas já antes Diogo (João Farraia), filho de Catarina, nos desafiava com a inquietação que todas as mudanças civilizacionais transportam: Se já não é a religião, nem a família, nem a política, então é o quê? A pergunta fica no ar, cabe-nos encontrar resposta para a equação a que este magnífico espectáculo nos desafia.

De registar a implantação cénica, plena de significados, de Jean-Guy Lecat, que lê com impressiva eficácia o que no texto de Rodrigo Francisco há de denúncia e contestação de um tempo e seus perturbadores sinais.




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