A atracção «dos homens da massa» pelo dirigismo desportivo

José Augusto

Sempre me confundiu a apetência quase patológica dos empresários pela presidência dos clubes de futebol. Lamentavelmente, o fenómeno é diagnosticado em muitos outros países, bastando trazer à memória os episódios de Gil e Gil, no Atlético de Madrid, e o de Bernard Tapie, no Olímpico de Marselha.

Um caso, porém, permitiu-me espreitar por uma frincha deste intrincado de relações extra-desportivas e alcançar uma ideia mais clara desse amor sem limites que grandes empresários e industrias consagram à bola, ou melhor, aos cargos dirigentes do desporto mais popular do planeta, que Albert Camus considerou o «fenómeno social mais importante do século XX».

Iniciara-se a última década do século passado quando Khussam Al-Khalidi, um jovem recém-licenciado em Letras pela Universidade de Moscovo, filho de um de um abastado negociante iraquiano, comprou o Krassnaia Pressnaia, um clube da segunda liga russa, com sede e estádio no centro da capital. Adquiriu tudo: estádio, centro de estágio e passes dos atletas. Depois, a instâncias do pai, baptizou o clube de Asmaral, nome composto pelas primeiras letras dos três filhos do nababo de Bagdad: Assi, Mariam e Alan.

Entretanto, algo nisto pareceu estranho a um repórter da TV, que lhe perguntou, qualquer coisa parecida com isto: «Não me consta que os capitalistas gostem de deitar dinheiro pela borda fora, a parece-me que é o que o senhor está a fazer com este negócio. Que se passa, afinal?» Ao que o iraquiano respondeu: «Venha ter comigo daqui a três anos, e então falaremos!»

A verdade é que o clube subiu à I liga, onde assentou dois ou três anos, mas sem nunca atingir grande brilho na tabela classificativa ou apurar-se para uma qualquer prova europeia, apesar de ter contratado jogadores conhecidos, ainda que em fim da carreira, e um técnico que orientara o Spartak durante anos e o onze nacional.

Dirigentes escolhidos por tudo, menos pela competência

Acontece que o jornalista não se esqueceu e, tempos depois, voltou a abordar o jovem empresário. «Se perdi dinheiro? Pelo contrário, ganhei e muito. Dantes, quando pedia uma audiência a um membro do governo, esperava meses, ou nem era recebido. Hoje, desde que sou presidente do Asmaral, é quase de um dia para o outro. Faz ideia do que isso representa, em termos de capital, para o meu negócio?». Claro que fazemos ideia, e estamos conversados.

Raymond Kopa, famoso futebolista, filho de polacos mineiros, que deixou uma marca de classe na sua passagem pelo Reims e o Real Madrid, nos anos 50 e 60, também ponderou sobre o assunto, numa brochura intitulada Mon Football: «Se a maioria dos jogadores se ocupasse mais da sua modalidade preferida, não a deixando cair nas mãos de dirigentes pouco capazes, talvez o futebol não tivesse entrado em crise. Mas o que acontece é que os dirigentes dos clubes são escolhidos por tudo, menos pelo seu passado desportivo, pela sua competência desportiva».

E ainda: «A maior parte cai de pára-quedas, não percebe grande coisa de futebol. A presidência de um clube representa para eles apenas posição social. Fala-se deles, tornam-se célebres, porque são adulados, entrevistados. Convertem-se em personalidades. Ora, a maior parte não conhece nada, é incapaz de ajuizar sobre o jogo, os atletas ou treinadores».

Isto traz à memória – e certamente a vós também - muitas coisas, e algumas muito recentes. Adiante.




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