Assassinaram a Bella Ciao. A Bella Ciao está viva

Manuel Augusto Araújo

Bella Ciao era o hino dos resistentes antifascistas italianos

Sabemos, todos devíamos saber, que a ideologia burguesa ataca e cerca sem desbarato de tempo toda a resistência à abominação desta sociedade sem dignidade. Combate todo e qualquer sinal de resistência, de qualquer forma de resistência ao pensamento dominante, com o objectivo último de que já não seja sequer possível pensar que é possível pensar uma sociedade onde os valores da civilização, da humanidade, da cultura, da política se plantam para florescer, ainda que com todas as contradições e dificuldades.

Vulgar é a rescrita da história para rasurar a heroica luta dos povos pela emancipação, pelo fim da exploração do homem pelo homem. Banal o bombardeamento diário feito pelos meios de comunicação social e pelas redes sociais, concentrados pelos gigantescos grupos económicos em grandes empresas mediáticas que constroem realidades para ocultar a realidade. Comum a bastardização da cultura pelas indústrias culturais e criativas, moinhos onde nas suas rodas dentadas se reduz a pó a cultura para fazer luzir o entretenimento que não exige reflexão nem sintoniza sentimentos e tudo se afundar num perverso gosto homogeneizado e acéfalo.Um totalitarismo que até pode dispensarditadores e caudilhos, pulsa fortemente nos sistemas democráticos com o objectivo de reduzir e anular o espectro do debate e das ideias.

O combate a este estado de sítio é duro, exigente. Há que reconhecer que a direita tem tido êxitos nessa batalha e que muita esquerda está colonizada pelo pensamento de direita.

Hino de resistência

Uma das formas mais sofisticadas e eficazes dessa ditadura do pensamento é prostituir, com as ferramentas do mercado, a cultura. Exemplo recente é a castração da Bella Ciao, essa bela e comovente canção dos partigiani que lutaram com denodamento contra o fascismo. Apropriaram-se dela para a usarem como banda sonora da série televisiva A Casa de Papel. Descontextualizaram o seu potencial revolucionário para a tornarem um fetiche da cultura de massas desligada da cultura popular e de resistência. Colocaram-na nos top ten em muitos países hispânicos e de língua portuguesa.

Canta-se e dança-se ao som da Bella Ciao indiferentes aos seus belos e comoventes versos: Bella Ciao (adeus Bela) / Esta manhã, acordei / encontrei um invasor // Oh, guerrilheiro, leva-me contigo / Bella Ciao, Bella Ciao,/ Porque sinto que vou morrer // Se morrer como membro da Resistência / Enterra-me como membro da Resistência // Enterra-me no alto das montanhas / À sombra de uma bela flor/ Bella Ciao, Bella Ciao / As pessoas que passarem / Dirão: que bela flor!// Essa será a flor da Resistência/ Daquele que morreu pela liberdade (tradução livre).

Ela move-se!

Com A Internacional, Bella Ciao era o canto dos partigiani, socialistas, anarquistas, sobretudo comunistas. Eram os hinos da resistência italiana. Hoje Bella Ciao é um hit de A Casa de Papel, cantada em vários momentos-chave da trama pelos personagens que vão assaltar a Casa da Moeda de Madrid, como se tivesse sido escrita para essa série. Destrói-se a história, a grande e bela história da Bella Ciao,esvaziando o seu conteúdo subversivo, o seu significado antifascista para a tornar um produto de consumo equivalente às centenas de canções de amor filistino de um qualquer Tony Carreira.

Assassinaram a Bella Ciao com a mesma frieza com que têm assassinado os milhões de mulheres e homens que lutaram e lutam para transformar a vida, devolver à humanidade a humanidade. Para esses resistentes de ontem e hoje Bella Ciao está viva. Contra os ventos da história desfavoráveis devemos continuar a lutar com a convicção de Galileu frente ao tribunal da Inquisição: No entanto, ela [a Terra] move-se!



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