Os nossos recados

Correia da Fonseca

Agora que já não suportamos o peso da taxa de analfabetismo que antes de Abril era uma vergonhosa marca nacional, quase todos nós podemos escrever a amigos ou familiares, mandar por escrito palavras da nossa saudade ou de tristezas e alegrias, confiá-las a um pedaço de papel que depois parece voar para o seu destino porque mãos diligentes irão garantir esse trajecto. Esse vôo acontece de norte a sul, do interior ao litoral, ou vice-versa, e ao longo de décadas acostumámo-nos a que ele se realizasse com eficácia, o que aliás não nos surpreendia por uma boa razão: é que era assegurado por serviços públicos, do Estado, isto é, de todos nós. Para mais, as estações dos CTT como que semeadas por todo o território nacional eram como que pequenas embaixadas do Estado português e eram olhadas como aquilo que na verdade eram: coisa nossa que estava ao nosso serviço. Acresce que eram rendáveis, isto é, que davam globalmente algum lucro que ia acrescentar-se à totalidade das receitas públicas e por essa via financiar despesas do Estado decerto necessárias e proveitosas para a generalidade dos cidadãos. Em suma, dir-se-á que os CTT estatais eram um bom negócio no plano financeiro e como quotidiana afirmação de um Estado coeso.

Coisa nossa

Precisamente porque eram um bom negócio financeiro, sobre os CTT recaíram coincidentemente a cobiça de privados e a colaboração do governo PSD/CDS em matéria de privatizações: há um pouco mais de quatro anos, os CTT foram entregues a mãos privadas, assim se contrariando a maioritária posse pública na maioria dos países europeus e até a realidade em países como os Estados Unidos, tão servidores da iniciativa privada. De então para cá, a qualidade dos serviços postais portugueses caiu em espectacular trambolhão de que a TV veio dando notícias, ainda que não muitas. Todos soubemos, assim, que em consequência da gestão privada muitos milhares de cidadãos se sentiram menos próximos do país a que pertencem e muitas vezes com graves prejuízos de ordem prática como a dificuldade em receberem as reformas que são pagas por vale postal. Soubemos também das mais que legítimas e fundamentadas acções de protesto. Em dias mais recentes, a mesma televisão veio informar-nos de que o PS está pressionando o governo para que este desencadeie a reversão da privatização havida, infelizmente esquecendo-se pelo menos a TVI de que essa mesma reivindicação já vinha sendo feita pelo PCP. A questão foi abordada na SIC na passada segunda-feira, e logo aí José Gomes Ferreira, habitual economista de serviço, levantou dificuldades invocando custos e omitindo proveitos. Mas a retoma do serviço postal público é necessária, justa e desejada pela população. Por razões várias entre as quais talvez se destaque o facto de ser a retoma de uma fracção do Estado. Isto é: de coisa que deve ser nossa.




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