Raiva, de Sérgio Tréfaut

Domingos Lobo

Há em Seara de Vento, o romance canónico de Manuel da Fonseca (MF), uma «realidade externa» que ultrapassa o próprio território, o Alentejo, em que a tragédia se estabelece. O modo como o processo de destruição da família Palma progride na diegese é mais do que o relato de um facto que configura a crueldade do salazarismo, é uma parábola agreste sobre as condições de vida e de trabalho dos homens que habitam o espaço rural. É de um país espectral de fome e medo conjugados, de homens desapossados de terra que apenas possuem de seu o corpo e a força que põem à venda e à mercê dos humores dos latifundiários, que o livro de MF e, agora, o filme de Sérgio Tréfaut, tratam.

Em Seara de Vento, como em Raiva, de Tréfaut, é a visibilidade constrangedora do real, a denúncia social e ideológica de um tempo, de uma circunstância, de vidas de dureza extrema (o monte, o casebre, a condição social dos Palma; a perseguição da GNR e o ódio de classe do latifundiário; a venda, os caminhos do contrabando) que estabelecem as razões do conflito, a sua épica intrínseca (que a versão fílmica subtilmente contorna) que tornam este texto de MF matéria de cinema por excelência: o choque de classes e as dinâmicas do melodrama que esse embate, através da revolta e da dignidade do Palma, estabelece e implica.

Em outros textos do universo neo-realista (Cerromaior, Esteiros, Barranco de Cegos) encontramos igualmente essa determinante, que advém da estética marxista, de querer mostrar, de «fazer ver» («o poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo»)1, o que decorre implícito da narrativa, essa abordagem de outras linguagens que permite ao autor «dar a ver» o real para além do discurso sobre a realidade política e social que os seus textos expressam – tal como o faz o cinema comprometido com o realismo –, permitindo que a indignação perante o estupor do narrado se estabeleça e amplie. Onde o real (o monte habitado pelos Palma, a secura da terra, a desolação da paisagem), que a câmara de Tréfaut consegue captar de modo impressivo, como se estivéssemos perante um filme de Bergman ou Pasolini, a que o magnífico preto e branco de Acácio de Almeida empresta a atmosfera opressiva que percorre todo o filme, consegue pelo conceptualismo da figuração interpretativa, conjugar a subjectividade sensorial que a linguagem literária contém.

Um homem só não vale nada!

Seara de Vento precisava de um realizador como Sérgio Tréfaut que, partindo do discurso sobre a humilhação sofrida pelos pobres, a hedionda repressão, a fome e o medo que desumaniza os homens (a cena em Raiva em que o Palma e o cunhado se batem pelos restos do coelho que a águia devora, é magistral), conseguisse captar os fragmentos emotivos, o surro existencial que a palavra poética de MF transporta, transformando-a num modo narrativo que expressa o individual no corpo largo da comunidade, o espaço telúrico e mítico do Alentejo, com a vertigem de uma câmara que domina o expressivo dos rostos (a dureza do Palma no rosto de Hugo Bentes, a secura e o drama de Amanda Carrusca na máscara sublime de Isabel Ruth, o sofrimento e o silêncio de Júlia no rosto sereno e trágico de Leonor Silveira, a determinação de Mariana no expressivo olhar de Rita Cabaço), que mostra as rugas, as vozes, as marcas do tempo sobre a paisagem, o despojamento, o peso do silêncio, a solidão das lonjuras, o sufoco aprisionado das vozes na venda, o rumor do vento entrando pelas frechas do casebre dos Palma, o grito lancinante do Bento, Mã!... Ó mã’!..., a mão calejada do Palma acariciando o filho.

Raiva, de Tréfaut, percorre, na estética límpida e seca da sua abordagem, o mesmo chão de verdade, de revolta e de luta, essa visão pungente do homem em conflito que o romance de MF amplamente formula.

Pena que o grito de Amanda Carrusca, esse aviso aos homens para que se não percam sozinhos nos caminhos da luta, não faça parte do discurso filmico de Sérgio Tréfaut:

- Digam à minha neta! Digam-lhe que ela tem razão! Um homem só não vale nada!

1 Manuel da Fonseca, verso do poema Os Olhos do Poeta, in Rosa dos Ventos




Mais artigos de: Argumentos

Tempo de chuviscos

No passado dia 11, e a julgar pelo que os serviços meteorológicos da televisão nos contaram, a tácita promessa de bom tempo que o dia consagrado a São Martinho transporta falhou generalizadamente em quase todo o território nacional: choveu quer sob a forma de chuva continuada quer sob a forma dos chamados aguaceiros,...

O Filho

Olhando para o vazio: «Dias escuros e sombrios. Parece negro como breu. A escuridão é tão escura que se torna negra, quase como lodo. E parece que cada vez faz mais escuro ano após ano. Já não há luz em lado nenhum. Agora também há tantas casas vazias… Há cada vez menos gente aqui. Não tarda...