O Filho

José Carlos Faria

Olhando para o vazio:

«Dias es­curos e som­brios. Pa­rece negro como breu. A es­cu­ridão é tão es­cura que se torna negra, quase como lodo. E pa­rece que cada vez faz mais es­curo ano após ano. Já não há luz em lado ne­nhum. Agora também há tantas casas va­zias… Há cada vez menos gente aqui. Não tarda a única coisa que resta é a es­cu­ridão.»

Co­meça assim a peça O Filho, es­crita em 1997 pelo no­ru­e­guês Jon Fosse e que teve es­treia por­tu­guesa em 11 de Ou­tubro pas­sado, pelo Te­atro da Rainha.

Fosse, nas­cido em 1959, um dos mais im­por­tantes e pre­mi­ados au­tores con­tem­po­râ­neos, re­pre­sen­tado in­ter­na­ci­o­nal­mente, es­treou-se na li­te­ra­tura aos vinte e quatro anos, tendo pu­bli­cado ro­mances, po­esia, en­saio, no­velas e li­vros para cri­anças. As per­so­na­gens do seu te­atro, desde a sua pri­meira peça em 1994, são gente comum, que, mais do que ex­postos ao «ex­cesso e ca­tás­trofes do nosso tempo», mos­tram a ba­na­li­dade do seu quo­ti­diano e das suas re­la­ções, em diá­logos mar­cados pelo la­co­nismo, pausas e si­lên­cios. A pa­lavra, con­tida e re­pe­tida, exerce um duplo poder, des­truidor e re­ve­lador.

Fosse es­creve a sua obra em neo-no­ru­e­guês (o «ny­norsk», ela­bo­rado, em me­ados do sé­culo XIX, com pa­ren­tesco ao no­ru­e­guês an­tigo), língua obri­ga­tória nas es­colas mas só fa­lado na re­gião de Bergen e que co­e­xiste com o «riks­mall», her­dado do di­na­marquês. Como lembra o pro­grama do es­pec­tá­culo, face ao «riks­mall», con­si­de­rado um meio abu­sivo de hi­e­rar­quizar as classes e as re­la­ções so­ciais, o «ny­norsk» é uti­li­zado pelas classes po­pu­lares, so­bre­tudo ru­rais e pis­ca­tó­rias, já que lhes ofe­rece a pos­si­bi­li­dade de afirmar a sua iden­ti­dade contra o do­mínio cul­tural da ca­pital e das ci­dades que, nas mãos de um Par­tido Con­ser­vador, de­fensor antes do mais dos in­te­resses bur­gueses e dos no­tá­veis, «não sabem re­sistir à in­fluência de uma cul­tura es­tran­geira e di­ri­gida para o ex­te­rior».

Diz Jon Fosse:

«Es­crevo – no que diz res­peito à forma e não ao con­teúdo – textos fe­chados sem pre­tender torná-los enig­má­ticos porque sei per­ti­nen­te­mente o que es­crevo. Se eles fazem re­fe­rência a um con­texto so­cial ou po­lí­tico, não é minha in­tenção, mas também não me oponho. As ima­gens do vazio que con­cebo podem dizer qual­quer coisa sobre a nossa so­ci­e­dade; elas fazem-no no en­tanto de uma ma­neira im­plí­cita. Nesse sen­tido a minha es­crita é de facto um co­men­tário crí­tico, leia-se po­lí­tico, se se quiser.»

Em O Filho, temos o Pai e a Mãe en­cer­rados em casa, com um Filho de­sa­pa­re­cido há meses e sobre quem um pre­do­mi­nante Vi­zinho in­sinua estar preso. O Filho pró­digo re­gressa, é re­ce­bido com es­tra­nheza e ao saber da acu­sação, con­fronta o Vi­zinho. Este, car­díaco, morre de en­farte du­rante a dis­cussão e o Filho volta a partir para o des­co­nhe­cido.

Es­tamos pe­rante a ex­tinção de uma co­mu­ni­dade («nin­guém fica») na ro­tina dos dias sempre iguais, na vi­o­lência surda da frieza e in­co­mu­ni­cação. As trevas vêm da noite, do iso­la­mento e da so­lidão. Tudo acon­tece num fi­orde mas podia ser cá, no nosso «in­te­rior de­ser­ti­fi­cado», tão ci­tado e tão es­que­cido.

A an­gústia das per­so­na­gens de­corre do es­ma­ga­mento das pers­pec­tivas de­vido à agres­si­vi­dade do con­texto eco­nó­mico em que se si­tuam. E isto no quadro de um país rico, com o maior ren­di­mento per ca­pita do mundo…

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O Filho: Te­atro da Rainha

Texto: Jon Fosse

En­ce­nação: Fer­nando Mora Ramos

In­ter­pre­tação: Isabel Lopes, An­tónio Parra, Carlos Borges e Fer­nando Mora Ramos




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