A paixão pelos livros
Os livros que Cruz Santos edita são «pequenas obras-primas de arte gráfica»
O editor José da Cruz Santos é, disse-o Saramago, «o melhor editor português. [...] em amor pelos livros, em gosto gráfico, em capacidade inventiva, não vejo ninguém capaz de pôr o pé adiante dele». As palavras do Nobel sintetizam com veemência o que outros intelectuais já afirmaram sobre este editor, cujo ofício reside em transformar resmas de palavras em requintados objectos-livro. Os livros que Cruz Santos edita são, para além do conteúdo, pequenas obras-primas de arte gráfica. Essa marca é a da qualidade, logo, da palavra como modo supremo de nos dizermos, palavras que nos inscrevem na memória dos dias com Ostinato Rigore.
Não por acaso, este «mestre da edição», mesmo sabendo que um livro de versos só dá prejuízo, privilegiou sempre a poesia como modo superior de afirmação pessoalíssima, investindo num projecto editorial fecundo e singular. Num mercado tão estranhamento avesso à palavra lírica, de escasso consumo de obras de poesia, José da Cruz Santos teve a coragem de arriscar e desse risco resultarem títulos e autores incontornáveis da nossa cultura literária. Isso lhe devemos, conscientes de que a nossa gratidão não basta para cobrir as despesas da incessante busca de pepitas que brilham nas nossas estantes.
Das edições mais recentemente da Modo de Ler, destaco esse belíssimo (no conteúdo e no grafismo) A Fome Apátrida das Aves, de Francisco Duarte Mangas, poesia de que Manuel Gusmão disse ser o trágico suavizado pelo lírico. Como se alguém nos falasse ao ouvido; a Obra Poética, desse enorme poeta, quase esquecido, que é José Terra, e O Povo, Meu Poema, Te Atravessa, verso de Carlos Drumond de Andrade que serve de aglutinador a esta plural colectânea de vozes que trazem em comum o amor ao povo liberto e com camisa, num propósito que o subtítulo da obra não elide: Antologia Poética de Língua Portuguesa Nos Cem Anos da Revolução de Outubro.
Coube ao escritor e poeta Francisco Duarte Mangas proceder à escolha dos autores (maioritariamente portugueses, mas também angolanos, brasileiros, moçambicanos), e dos poemas que constam desta, a vários títulos, notável obra a qual, a «pretexto do centenário da Revolução de Outubro, e era essa», diz-nos o autor no prefácio, «a ideia do editor», nos dá a ler uma mão-cheia de poemas verdadeiramente únicos e imprescindíveis, os quais, longe de estarem datados, reflectem o que de melhor foi escrito em português por poetas de várias gerações, opções estéticas e políticas, sobre essa coisa justa e digna que é a defesa da Vida, da Liberdade e dos valores que ela transporta.
Como Urbano Tavares Rodrigues disse ao Che, em 1961 (estou a citar Mangas), a «poesia de alta qualidade, mesmo quando não parece directamente ligada ao processo revolucionário, é sempre progressista». O antologiador cumpriu, com sensibilidade, lucidez e acerto, esse princípio.
A editora Modo de Ler deu à estampa um livro raro, raro pelo propósito que lhe esteve na génese, acrescentando que o mesmo se enquadra nas comemorações dos duzentos anos do nascimento de Karl Marx; raro pela qualidade dos poemas antologiados e raro pela excelência gráfica da edição, que exibe na sobrecapa uma foto de Armando Alves, sobre o baixo relevo da sede do PCP no Porto.
Em tempos de novo sombrios para a humanidade, quando está em curso, em várias geografias deste nosso desvairado mundo, um preclaro retrocesso civilizacional, é de saudar o aparecimento de uma obra tão exemplarmente concebida, que se assume «pequena homenagem aos resistentes do passado, aos revolucionários do devir.»
Já poucos editores, meu caro José da Cruz Santos, se atreveriam a tanto.
O Povo, Meu Poema, Te Atravessa – Antologia Poética de Língua Portuguesa Nos Cem Anos da Revolução de Outubro – Selecção e Prefácio de Francisco Duarte Mangas – Edição Modo de Ler/2018