No grande cemitério

Correia da Fonseca

O barco tem o nome de «Aqua­rius», o que soa com um travo quase sar­cás­tico porque dentro dele não vi­nham peixes mas sim gente; cri­anças, mu­lheres e ho­mens que o de­ses­pero tinha im­pe­lido a ar­ris­carem as vidas, em ver­dade o que res­tava delas, a bordo de um barco re­la­ti­va­mente frágil e es­cas­sa­mente apro­vi­si­o­nado numa tra­vessia já mar­cada por uma si­nistra his­tória re­cente. Eles de­certo sa­be­riam, ainda que com im­pre­cisos con­tornos, que o mar que que­riam atra­vessar já guar­dara nas suas águas os corpos dos que ha­viam fa­lhado a vi­agem, tantos que bem se po­derá dizer que aquele é hoje mais vasto ce­mi­tério do mundo. E é de tal modo assim que por­ven­tura custa a en­tender como con­tinua a haver cen­tenas, talvez mi­lhares de cri­a­turas nor­mais que em época de ve­ra­neios não pa­recem he­sitar em mer­gu­lhar na­quelas águas, de algum modo par­ti­lhando com os mortos, em­bora a larga dis­tância, um seu úl­timo banho. Era, pois, um barco cheio de gente an­gus­tiada; di­rigia-se para Itália, lugar dessa Eu­ropa que lhes surgia como a sal­vação pos­sível, a al­ter­na­tiva à si­nistra tríade de fome, peste e guerra, que em cada dia os ame­a­çava. Mas a Itália é pobre em vasta parte do seu ter­ri­tório, está agora a ser ge­rida por um go­verno que aposta na re­cusa da en­trada de re­fu­gi­ados para desse modo ci­mentar a sua po­pu­la­ri­dade, o «Aqua­rius» não foi au­to­ri­zado a aportar a qual­quer porto ita­liano.

A res­posta

Ali mesmo ao lado es­tava a França, país com an­tiga re­pu­tação de se­guir ex­ce­lentes prin­cí­pios. Mas não, a França também não quis re­ceber aquele enorme grupo de gente es­fo­meada e talvez do­ente. Valeu a Es­panha, que de­cidiu um gesto de so­li­da­ri­e­dade aco­lhendo os 629 in­fe­lizes, se é que ainda es­tavam todos vivos, desse modo evi­tando que se con­su­masse mais uma tra­gédia e o grande ce­mi­tério re­ce­besse mais umas cen­tenas de corpos. Deste caso, mas não apenas deste caso, se falou no «Prós e Con­tras» desta se­mana: como ali ficou bem claro, a questão re­side não apenas na odis­seia do «Aqua­rius», de facto to­mada como ponto de par­tida para a abor­dagem da questão, mas numa si­tu­ação em que a franja se­ten­tri­onal de um enorme con­ti­nente cuja po­pu­lação foi es­po­liada ao longo de sé­culos des­peja para o mar mi­lhares de de­ses­pe­rados. De onde a per­gunta: es­tará es­go­tada a ca­pa­ci­dade eu­ro­peia de in­te­gração de re­fu­gi­ados? E, ainda que se con­si­dere apenas que esse es­go­ta­mento será ine­vi­tável ao ritmo ac­tual, a per­gunta sub­se­quente e ine­vi­tável: que fazer? Faltou no «Prós e Con­tras» a res­posta ade­quada: cessar a ex­plo­ração de África e do Médio Ori­ente pelo «Oci­dente» ines­cru­pu­loso, pro­mover o de­sen­vol­vi­mento das áreas «for­ne­ce­doras» de re­fu­gi­ados de modo a que eles possam en­con­trar nas suas pró­prias terras a so­bre­vi­vência que os dis­pense da sui­ci­dária aven­tura da emi­gração. Isto é: do risco de au­men­tarem a ma­cabra po­pu­lação dos mortos no Me­di­ter­râneo.




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