Os caminhos imaginados de Cláudia Dias

Gustavo Carneiro

Cláudia Dias não teme dra­ma­tizar os po­dres do mundo nem pro­cura equi­dis­tân­cias

Quarta-feira. O Tempo das Ce­rejas é a ter­ceira parte do pro­jecto Sete Anos, Sete Peças, da bai­la­rina e co­reó­grafa Cláudia Dias, es­treada no pas­sado dia 7 no Fes­tival Al­kan­tara. À se­me­lhança do que su­cedeu com as duas cri­a­ções an­te­ri­ores, Se­gunda-feira. Atenção à Di­reita! e Terça-feira. Tudo o que é Só­lido Dis­solve-se no Ar, cons­truídas em par­ceria com Pablo Fi­dalgo Lareo e Luca Bel­lezze, Cláudia Dias teve um «cúm­plice» para mais este es­pec­tá­culo: Igor Gandra, di­rector do Te­atro de Ferro e do Fes­tival In­ter­na­ci­onal de Ma­ri­o­netas do Porto.

Comum às três peças é, também, o olhar ques­ti­o­nador sobre o mundo: a de­núncia de in­jus­tiças e fla­gelos so­ciais, a pro­jecção de al­ter­na­tivas, a afir­mação de po­si­ções claras, po­lí­ticas, no que a pa­lavra tem de mais amplo e exal­tante. Uma ati­tude con­tras­tante com a de ou­tros ar­tistas, que ora evitam (por opção ou in­ca­pa­ci­dade) a abor­dagem de de­ter­mi­nadas te­má­ticas, in­có­modas, nas suas cri­a­ções, ora cul­tivam uma certa am­bi­gui­dade, ci­osos em estar de bem com Deus e com o Diabo.

Já Cláudia não teme dra­ma­tizar os po­dres do mundo nem pro­cura equi­dis­tân­cias; toda ela é in­qui­e­tação, re­volta e sen­si­bi­li­dade: na pri­meira cri­ação, os efeitos da cha­mada «aus­te­ri­dade» são apre­sen­tados como murros e pon­tapés des­fe­ridos num com­bate corpo-a-corpo (com di­reito a equi­pa­mento, luvas e ringue) e na se­gunda um fio branco é, su­ces­si­va­mente, o pas­sado e o pre­sente, a vida e a morte, as es­pe­ranças e os te­mores dos pa­les­ti­ni­anos.

Por mais evi­dente que seja o lado da His­tória em que Cláudia Dias se en­contra – que não só não es­conde como re­vela com total de­sas­sombro –, quem nas suas cri­a­ções pro­curar pan­fletos e ver­dades prontas a servir não os en­con­trará. Aliás, são per­guntas o que mais faz nas três obras já es­tre­adas do ciclo Sete Anos, Sete Peças.

E se…?

O ce­nário de Quarta-feira. O Tempo das Ce­rejas é o mais des­po­jado pos­sível: um es­trado vazio e um ecrã é tudo quanto se en­contra no palco. A cen­tra­li­dade é dada às pa­la­vras e ima­gens pro­jec­tadas na tela e ao es­cavar – cons­tante, lento, quase so­frido – de um imenso bu­raco de onde emer­girão Cláudia, Igor e as ma­ri­o­netas que os re­pre­sentam. Ele tanto pode re­meter para a cra­tera de um míssil To­mahawk, que os EUA têm usado por esse mundo fora e re­cen­te­mente contra o povo da Síria, como para os bu­racos fi­nan­ceiros que em­purram mi­lhões para a po­breza: sobre ele ques­tiona-se, em le­tras brancas sobre fundo preto, «e se um dia as crises dei­xarem de ser bu­racos abertos nas de­mo­cra­cias?»

Entre 1971 e o ano em que nos en­con­tramos são re­al­çados acon­te­ci­mentos de im­pacto in­ter­na­ci­onal, das vi­tó­rias elei­to­rais de Nixon, That­cher ou Re­agan às di­ta­duras fas­cistas no Chile e na Ar­gen­tina; da in­vasão de Gra­nada e das guerras na Ju­gos­lávia, Iraque ou Síria ao alar­ga­mento da NATO até às fron­teiras russas. Ao mesmo tempo, pros­segue a es­ca­vação, como pros­segue di­a­ri­a­mente a acção dos que, re­jei­tando e com­ba­tendo o que lhes é im­posto, pro­jectam e cons­troem o devir.

É esse fu­turo que Cláudia e Igor ima­ginam ao mesmo tempo que se er­guem dos es­com­bros: um fu­turo que abrisse a porta à saída con­tro­lada da moeda única ou à na­ci­o­na­li­zação da banca à es­cala mun­dial; que pos­si­bi­li­tasse, em 2027, a dis­so­lução da NATO e seis anos de­pois a im­ple­men­tação do ho­rário se­manal das 25 horas. Um fu­turo no qual seja «mais fácil ima­ginar o fim do ca­pi­ta­lismo do que o fim do mundo».

Ima­gi­nação? Sim, muita. Mas não é o sonho o pri­meiro passo do pro­jecto e da luta?


 



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