Chico Buarque e a revolução de emoções
Muitas das mais belas canções brasileiras foram escritas por Chico Buarque
Das abundâncias que caracterizam o Brasil, a das canções é das mais indispensáveis. Muitas delas – e das mais belas, algumas – foram escritas por Francisco Buarque de Hollanda, o Chico Buarque que há várias décadas marca encontro com os públicos portugueses. Escreveu canções sozinho e em parceria, umas valendo por si, outras integrando dramaturgias e enredos de cinema. Cantou grande parte do que escreveu, e o modo de cantar tornou-se portador essencial e insubstituível das mensagens que – por fortuna da partilha do idioma – construíram muito da nossa noção de Brasil.
Brasil que é pátria de Rita, Bárbara, Beatriz, Carolina, Januária e Pedro (que era pedreiro), de Teresinha, Jorge Maravilha, Geni e tantos outros, que sendo nomes são condições – retratos de gente comum convertida em protagonista principal da grande aventura humana.
O canto de Chico Buarque, feito para ser incisivo, nunca abandonou a qualidade formal da criação, como quem constrói canções em parceria ideológica com Ernesto Guevara, o tal que dizia que hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás. Canções como Deus lhe Pague, Apesar de Você, Cálice, entre muitas outras, são irrepreensíveis manifestos políticos e estéticos – na música, na poesia, nos arranjos –, peças de arte total a enriquecer o património da luta pela justiça social, sem concessões ao «ligeirismo» ou ao panfleto onde la ternura algures se perdeu. Também Construção, Notícia de Jornal, Geni e o Zepelim e tantas mais, constituindo-se peças exemplares da arte de cantar histórias, são testemunho exemplar de tomada de consciência e consequente envolvimento na solução.
Do mesmo modo, o lirismo de Chico Buarque é o contrário do xarope sentimentalão – desgosto literal e estético – em que os amores são produtos de mercado nas transacções do coração; mas disso fale Carlos Drummond de Andrade, que tão bem disse a propósito da publicação de A Banda: «coisas de amor são finezas que se oferecem a qualquer um que saiba cultivá-las, distribuí-las, começando por querer que elas floresçam. E não se limitam ao jardinzinho particular de afetos que cobre a área da nossa vida particular: abrangem terreno infinito, nas relações humanas, no país como entidade social carente de amor.»
Chico em Portugal
Em 1980 o autor de Tanto Mar cantou na Festa do Avante!, acompanhado por Edu Lobo, Simone e MPB4, num concerto em que se sentiu claramente – como tantas vezes, na Festa – a força transformadora da vontade democrática. O Brasil vivia então os tempos finais da ditadura, a caminho da campanha directas, já!, e o canto combativo dos músicos brasileiros ganhou para as emoções da esperança o imenso público que se se juntou no anfiteatro da Ajuda.
O espectáculo não tinha por que correr mal. Mas se por artes do absurdo Chico Buarque não tivesse podido cantar, bastaria a cor do primeiro acorde de uma qualquer das suas canções para que milhares de vozes desfiassem os sons e as palavras que são a banda sonora da História do Brasil. Foi mesmo assim: cantou-se, aplaudiu-se, riu-se, chorou-se, reunidas que estavam as condições subjectivas e objectivas que possibilitaram uma revolução de emoções comprometidas com a transformação deste mundo.
A correlação de forças alterou-se profundamente desde aquela noite de há quase 40 anos, no Brasil como no mundo, nas voltas de sobe-e-desce que são as da montanha-russa da História. As preocupações de Meu Caro Amigo (a carta cantada que Chico Buarque enviou em 1976 a Augusto Boal, exilado em Portugal) voltaram à nossa vida, mas não nos apanharam desprevenidos – há já muito que Chico Buarque vinha avisando que está provado, quem espera nunca alcança. De regresso a Portugal, o compositor que vai fugindo de ser cantor fez desfilar nos coliseus muitas das mais belas canções. E toda a gente cantou sei também quanto é preciso, pá, navegar. Nunca deixámos de o fazer.