Chico Buarque e a revolução de emoções

Manuel Pires da Rocha

Muitas das mais belas can­ções bra­si­leiras foram es­critas por Chico Bu­arque

Das abun­dân­cias que ca­rac­te­rizam o Brasil, a das can­ções é das mais in­dis­pen­sá­veis. Muitas delas – e das mais belas, al­gumas – foram es­critas por Fran­cisco Bu­arque de Hol­landa, o Chico Bu­arque que há vá­rias dé­cadas marca en­contro com os pú­blicos por­tu­gueses. Es­creveu can­ções so­zinho e em par­ceria, umas va­lendo por si, ou­tras in­te­grando dra­ma­tur­gias e en­redos de ci­nema. Cantou grande parte do que es­creveu, e o modo de cantar tornou-se por­tador es­sen­cial e in­subs­ti­tuível das men­sa­gens que – por for­tuna da par­tilha do idioma – cons­truíram muito da nossa noção de Brasil.

Brasil que é pá­tria de Rita, Bár­bara, Be­a­triz, Ca­ro­lina, Ja­nuária e Pedro (que era pe­dreiro), de Te­re­sinha, Jorge Ma­ra­vilha, Geni e tantos ou­tros, que sendo nomes são con­di­ções – re­tratos de gente comum con­ver­tida em pro­ta­go­nista prin­cipal da grande aven­tura hu­mana.

O canto de Chico Bu­arque, feito para ser in­ci­sivo, nunca aban­donou a qua­li­dade formal da cri­ação, como quem cons­trói can­ções em par­ceria ide­o­ló­gica com Er­nesto Gue­vara, o tal que dizia que hay que en­du­re­cerse, pero sin perder la ter­nura jamás. Can­ções como Deus lhe Pague, Apesar de Você, Cá­lice, entre muitas ou­tras, são ir­re­pre­en­sí­veis ma­ni­festos po­lí­ticos e es­té­ticos – na mú­sica, na po­esia, nos ar­ranjos –, peças de arte total a en­ri­quecer o pa­tri­mónio da luta pela jus­tiça so­cial, sem con­ces­sões ao «li­gei­rismo» ou ao pan­fleto onde la ter­nura al­gures se perdeu. Também Cons­trução, No­tícia de Jornal, Geni e o Ze­pelim e tantas mais, cons­ti­tuindo-se peças exem­plares da arte de cantar his­tó­rias, são tes­te­munho exem­plar de to­mada de cons­ci­ência e con­se­quente en­vol­vi­mento na so­lução.

Do mesmo modo, o li­rismo de Chico Bu­arque é o con­trário do xa­rope sen­ti­men­talão – des­gosto li­teral e es­té­tico – em que os amores são pro­dutos de mer­cado nas tran­sac­ções do co­ração; mas disso fale Carlos Drum­mond de An­drade, que tão bem disse a pro­pó­sito da pu­bli­cação de A Banda: «coisas de amor são fi­nezas que se ofe­recem a qual­quer um que saiba cul­tivá-las, dis­tribuí-las, co­me­çando por querer que elas flo­resçam. E não se li­mitam ao jar­din­zinho par­ti­cular de afetos que cobre a área da nossa vida par­ti­cular: abrangem ter­reno in­fi­nito, nas re­la­ções hu­manas, no país como en­ti­dade so­cial ca­rente de amor.»

Chico em Por­tugal

Em 1980 o autor de Tanto Mar cantou na Festa do Avante!, acom­pa­nhado por Edu Lobo, Si­mone e MPB4, num con­certo em que se sentiu cla­ra­mente – como tantas vezes, na Festa – a força trans­for­ma­dora da von­tade de­mo­crá­tica. O Brasil vivia então os tempos fi­nais da di­ta­dura, a ca­minho da cam­panha di­rectas, já!, e o canto com­ba­tivo dos mú­sicos bra­si­leiros ga­nhou para as emo­ções da es­pe­rança o imenso pú­blico que se se juntou no an­fi­te­atro da Ajuda.

O es­pec­tá­culo não tinha por que correr mal. Mas se por artes do ab­surdo Chico Bu­arque não ti­vesse po­dido cantar, bas­taria a cor do pri­meiro acorde de uma qual­quer das suas can­ções para que mi­lhares de vozes des­fi­assem os sons e as pa­la­vras que são a banda so­nora da His­tória do Brasil. Foi mesmo assim: cantou-se, aplaudiu-se, riu-se, chorou-se, reu­nidas que es­tavam as con­di­ções sub­jec­tivas e ob­jec­tivas que pos­si­bi­li­taram uma re­vo­lução de emo­ções com­pro­me­tidas com a trans­for­mação deste mundo.

A cor­re­lação de forças al­terou-se pro­fun­da­mente desde aquela noite de há quase 40 anos, no Brasil como no mundo, nas voltas de sobe-e-desce que são as da mon­tanha-russa da His­tória. As pre­o­cu­pa­ções de Meu Caro Amigo (a carta can­tada que Chico Bu­arque en­viou em 1976 a Au­gusto Boal, exi­lado em Por­tugal) vol­taram à nossa vida, mas não nos apa­nharam des­pre­ve­nidos – há já muito que Chico Bu­arque vinha avi­sando que está pro­vado, quem es­pera nunca al­cança. De re­gresso a Por­tugal, o com­po­sitor que vai fu­gindo de ser cantor fez des­filar nos co­li­seus muitas das mais belas can­ções. E toda a gente cantou sei também quanto é pre­ciso, pá, na­vegar. Nunca dei­xámos de o fazer.




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