«O grande capital pretende refundar o regime no Brasil»
ENTREVISTA De passagem por Portugal, onde reuniu com o PCP e foi o principal orador num debate dedicado à situação no Brasil, no dia 17, em Almada, Ricardo Alemão, secretário nacional de organização do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), falou ao Avante! sobre contexto e objectivos que persegue o golpismo no país, e as prioridades e propósitos das forças populares que se lhes opõem.
«A campanha pela libertação de Lula e em defesa da sua candidatura é central»
Como caracteriza o contexto da actual ofensiva imperialista no Brasil?
Eu diria que no Brasil decorre a contra-ofensiva de resposta ao processo de resistência anti-imperialista protagonizado por governos democráticos. Até 2010, assistimos na América Latina a um período de avanço táctico do nosso campo. De lá para cá sucede o inverso. É esse o contexto.
Mesmo considerando a resistência de países como a Venezuela, no subcontinente a correlação de forças alterou-se profundamente. Não é possível discutir o Brasil sem ter em conta esta conjuntura.
Em que é que isso se traduz?
Há da parte do capital financeiro o objectivo de confrontar o regime democrático burguês instituído, o qual, com os limites que conhecemos, possibilita um certo grau de participação do povo e dos trabalhadores na política. Na prática estão a atacar a Constituição em vigor. Exemplo maior dessa ofensiva anti-regime foi o golpe de Estado [de destituição da presidente Dilma Rousseff]. Golpe que teve uma segunda fase: a prisão do ex-presidente Lula da Silva, cujo propósito é impedir que as forças progressistas regressem ao governo federal.
O que o grande capital pretende, no fundo, é refundar o regime no Brasil, impondo três características.
Quais são?
Por um lado, um regime que seja neocolonial, isto é, não apenas pró-imperialista mas abertamente subjugado e dependente. A vaga de privatizações em concretização ou projectadas, que vai desde o sistema de produção e fornecimento de energia eléctrica à banca e aos petróleos públicos, é disso exemplo.
Este governo e o projecto que está incumbido de levar por diante é ultra-neoliberal quando comparado com os executivos dos anos 90 liderados por Fernando Henrique Cardoso e Collor de Melo.
E um terceiro aspecto...
Pode dar exemplos concretos desse ultra-neoliberalismo?
O investimento público em várias áreas foi congelado por 20 anos. Isso implica a estagnação económica e social, uma vez que no Brasil é a iniciativa estatal que mais pesa no desenvolvimento.
Com este congelamento ficam também comprometidas as despesas nas áreas da Educação, Saúde e Previdência. Aliás, a contracção da despesa é o pretexto para avançarem para a reforma da Segurança Social. Afirmam que com as poupanças na Segurança Social arrecadam fundos para a Saúde e Educação, cujo investimento cortaram...
Durante os governos liderados por Lula da Silva e Dilma Rousseff, os trabalhadores brasileiros obtiveram aumentos reais nos salários de cerca de 70 por cento. O crescimento do salário mínimo teve um reflexo notável entre as camadas mais pobres.
Em Portugal, a medida social que pode ser mais conhecida dos governos Lula e Dilma é o programa «Bolsa Família». Na verdade, a política de valorização salarial foi a mais importante, tendo ainda efeitos positivos nas pensões de reforma, uma vez que nenhum aposentado pode auferir menos do que o salário mínimo.
Ora, a política de crescimento do salário mínimo vence em 2019. Tem de ser renovada pelo Congresso. Se não conseguirmos virar o tabuleiro nas próximas eleições, provavelmente ela não continuará, com todas as consequências que daí advêm.
A matriz ultra-neoliberal revela-se igualmente no ataque à legislação laboral, a qual vem desde os anos 30 do século passado. Nenhum governo anterior ousou mexer na sua estrutura como este governo golpista propõe.
Há pouco ia referir um terceiro aspecto da alteração de regime que diz estar em curso no Brasil...
É o carácter antidemocrático apoiado nos consórcios mediáticos, em sectores do aparelho judicial e nas polícias (federal e militar), bem como em sectores importantes do Ministério Público e das forças armadas. Recentemente e pela primeira vez em muitos anos, os generais tomaram posição pública para defenderem a prisão de Lula da Silva.
É hoje muito claro que a chamada «Lava-Jato» não é uma operação anti-corrupção, mas a ponta-de-lança da reconfiguração do regime.
Essa característica antidemocrática está expressa na condenação e detenção do ex-presidente Lula da Silva?
O PCdoB apoia Lula da Silva desde 1989. Fomos o único partido, além do Partido dos Trabalhadores, naturalmente, a estar com Lula da Silva em sete eleições consecutivas. Porém, com o golpe encerrou-se um ciclo político.
Lula da Silva, mesmo preso, é indicado pelas sondagens como o vencedor das presidenciais. Seja qual for o adversário. A direita, os golpistas, neste cenário, não têm um candidato capaz de disputar a vitória. A vitalidade da liderança das forças populares por parte de Lula é um facto. A campanha pela libertação de Lula e em defesa da sua candidatura é, por isso, central.
A nossa pré-candidatura [de Manuela D'Ávila], por seu lado, tem como intuito dar mais protagonismo e voz às posições do PCdoB, defender a promoção da unidade das forças democráticas e progressistas em torno de um programa capaz de resgatar o Brasil desse caminho antidemocrático, subalterno e de retrocesso social.
Garantir bases sólidas de uma proposta de democracia avançada é o que se impõe neste novo ciclo no país. O nosso campo tem de assentar em bases sólidas, programáticas, para reforçar uma candidatura triunfante e agregadora, que não se disperse em várias candidaturas; capaz de mobilizar as massas na luta contra os retrocessos e na exigência da sua reversão; assegurar que um futuro presidente do nosso campo tenha condições para seguir uma governação progressista mesmo sem maioria no parlamento, como o fizeram Lula da Silva e Dilma Rousseff.