Mas as crianças, senhores?

Correia da Fonseca

É sa­bido que a guerra na Síria está longe de ter­minar, e é igual­mente sa­bido que não ter­mi­nará en­quanto po­tên­cias oci­den­tais ca­pi­ta­ne­adas pelos Es­tados Unidos se obs­ti­narem em der­rubar o go­verno de Bashar-el-Assad, réu do im­per­doável de­lito de se en­tender muito bem com a Rússia, para esse tão nobre ob­jec­tivo der­ra­mando sobre grupos efec­ti­va­mente mer­ce­ná­rios da re­gião uma abun­dante chuva de dó­lares sob a forma de armas mo­dernas, mu­ni­ções al­ta­mente efi­cazes e mão-de-obra bas­tante para a exe­cução da em­prei­tada. En­tre­tanto, de ambos os lados da re­gião fron­tei­riça com a Tur­quia, o povo curdo obs­tina-se no sonho de con­se­guir a au­to­nomia/​in­de­pen­dência do Cur­distão, seu país, ob­jec­tivo de que a Tur­quia de Er­dogan não quer nem se­quer ouvir falar. Por tudo isto, e de­certo ainda por mais mo­tivos que aqui nos es­capam, a tra­gédia ins­talou-se em Goutha, si­tuada já nos ar­ra­baldes de Da­masco, a ca­pital, e sobre Goutha se de­sen­ca­deou uma in­tensa tem­pes­tade de bombas que mata não apenas os que com­batem o go­verno mas também, talvez so­bre­tudo, a po­pu­lação civil que di­fi­cil­mente se lem­brará ainda do tempo em que a Síria era o país mais tran­quilo e so­ci­al­mente mais avan­çado da­quela zona. E, de entre os que morrem, serão mais nu­me­rosos os que mais di­fi­cul­dade te­nham em fugir, os ve­lhos e as cri­anças. Quanto aos ve­lhos, não há re­gisto me­diá­tico de grandes co­mo­ções: afinal são ve­lhos, já vi­veram uns tempos, estão ma­duros para a morte e são ge­ral­mente feios, mas a morte de cri­anças é uma dor de alma. Por isso as câ­maras das te­le­vi­sões buscam os seus cor­pitos inertes para os mos­trarem ao resto do mundo.

Inertes e usados

A esses mo­mentos de re­por­tagem move-os de­certo o dever de in­formar. Não é, porém, um dever que venha só, di­gamos assim. O caso é que o go­verno de Da­masco, que até ver é o único com a le­gi­ti­mi­dade con­fir­mada por re­co­nhe­ci­mento in­ter­na­ci­onal, tem a fama e o pro­veito de ser apoiado pelos russos, esses mais-que-maus, de onde ser im­pu­tada à Rússia a res­pon­sa­bi­li­dade pelos bom­bar­de­a­mentos aé­reos a Goutha, do­mi­nada pelos re­beldes. É o pavor ins­ta­lado, como se ima­gi­nará, e no meio dele estão cri­anças a morrer em con­junto com adultos. Atentas, as re­por­ta­gens dão-nos ima­gens desses pe­quenos corpos, pois que os ca­dá­veres dos adultos já não têm in­te­resse in­for­ma­tivo, e dir-se-ia por vezes só faltar que sobre essas pe­no­sís­simas ima­gens seja posto um le­treiro com a le­genda «made in Russia» a fim de tornar ex­plí­cita a acu­sação. En­ten­damos cla­ra­mente do que se trata: é a uti­li­zação de cri­anças mortas como arma no com­bate pro­pa­gan­dís­tico que sempre acom­panha os con­flitos bé­licos, e esse pro­cesso tem na ver­dade uma de­sig­nação que não é sim­pá­tica: é uma forma pe­cu­liar de pro­fa­nação de ca­dá­veres. Talvez os pais dessas cri­anças te­nham sido apoi­antes do go­verno de Da­masco, mas desse crime, se de crime se trata, estão os fi­lhos ino­centes. Con­tudo, ali estão eles, inertes, trans­for­mados em ar­gu­mentos no quadro si­nistro de um con­flito de facto ac­ci­o­nado de muito longe. Inertes e usados. Sem que nin­guém ou quase nin­guém se dê conta dessa sua úl­tima con­dição.




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