Ordem para matar
Eram, como muitos se recordarão, os termos em que Bond, James Bond, recebera autorização para eliminar os adversários. Por acaso as aventuras brutais e também galantes do quase mítico agente do MI5 estão agora a ser repetidas num dos canais estrangeiros a que o cabo permite aceder, mas nem vale a pena indicar qual: Bond teve o seu tempo, ter-nos-á divertido um pouco em alguns dos nossos tempos ociosos, e agora só merece continuar arquivado em algum lugar secundaríssimo da nossa memória, nada mais que isso. Agora, porém, como que a fórmula sinistra reaparece, não já oriunda dos serviços secretos de Sua Majestade e num quadro de ficção assinada por Ian Fleming mas sim numa realidade bruta, inescrupulosa, sem princípios mas com fins, a partir de Bruxelas. Chegou há poucos dias, foi diligentemente divulgada pelos media portugueses em geral com o habitual destaque para a televisão (e sempre sem ser acompanhada por qualquer comentário repugnado) e exprime-se numa fórmula ligeiramente diferente mas de facto equivalente no seu significado assassino: é «ordem para flexibilizar». Os despedimentos. E o cerne da questão situa-se no facto de que atirar um homem (ou, bem se sabe, uma mulher) para o desemprego é, em muitos planos, assassiná-lo, transformá-lo durante um prazo incerto numa espécie de cadáver como cidadão, como elemento de uma célula familiar, como criatura portadora de um conjunto de direitos fundamentais que deviam ser intocáveis, mas não são. Não o são, pelo menos, para o patronato anónimo e praticamente invisível sediado em Bruxelas, a cidade que era apenas a capital belga, o que aliás já não seria pouco, e agora é em quase sinistra medida a capital de poderes com legitimidade duvidosa mas terrivelmente efectivos. Cuja mais recente sentença é esta ordem para matar que se exprime, um tanto cobarde, numa fórmula «técnica»: flexibilizem os despedimentos.
Repugnante
Convém não aceitar o disfarce: a aceitação de que o caminho para uma economia supostamente mais sustentável recomenda a agressão a muitos milhares de cidadãos significa que a ordem socioeconómica exigente dessa medida é fundamentalmente iníqua, desumana e incompatível com um efectivo processo civilizacional. É certo que a televisão já de algum modo nos tranquilizou: informou-nos de que o Governo português discorda do «conselho» infame, e aliás nem de outro modo podia ser com este Governo e as condições da sua manutenção. Mas é claro que a posição do Governo português em relação a esta matéria não anula nem sequer reduz o carácter de auto-retrato dos poderes de Bruxelas. Recordemos, embora esta não seja questão que admita esquecimento: os que de facto se obstinam em funcionar como «governo europeu» dão ordem para que milhares de europeus sejam mais facilmente atirados para o abismo do desemprego, isto é, da angústia que se torna antecâmara do desespero, da penúria que rapidamente se revela miséria. Com um aspecto fundamental que convém não omitir: o de que esse recomendado massacre tem proveitos para alguns. Se este não é um quadro repugnante, nada neste mundo o será.