Celebrar a esperança

Manuel Pires da Rocha

O que combina a alegria colectiva com as vontades da esperança

Contam-se muitas quase-Primaveras entre as Saturnais da Antiguidade e os desfiles brasileirados dos dias frios de Portugal. Ainda assim, mesmo nos lugares em que se perdeu já a memória da origem dos acontecimentos, é para «reinar» com a existência que se sai à rua, se escarneia, se maldiz, se canta e se dança a vitória sobre os dias de pouca luz. Como não podia deixar de ser, é da terra e das mãos que a cultivam que se trata quando se trata de Festa. E quem diz mãos diz quem delas se aproveita – só já perto de nós se percebeu que não tinha de ser assim, que o ser-se pobre e ser-se rico não é inevitável condição, sendo possível cancelá-la assim haja vontade e organização. Mas até lá, não fosse o diabo tecê-las, criou-se no calendário das pobrezas uma estação em que a repartição da abundância e a permissão do destempero pudesse ser regra, ainda que por pouco tempo. Regra que é como quem diz a sua máscara, que logo a seguir se havia de inventar a Quaresma para pôr ordem no exagero – regressavam aos campos (e ao temor) os que lavravam o pão, tornavam ao palácio os que o guardavam para si.

No tempo em que o fascismo português procurou domesticar a cultura popular, há-de ter sido mais fácil fazer subir ao palco alegres bailadores vestidos de panos coloridos e reluzentes dourados do que encontrar enquadramento para foliões endiabrados vestidos de farrapos e carantonhas de pau e de lata, ágeis de mãos na tarefa de apalpar os corpos, lestos na língua de que se diz ser má quando se ocupa da vida dos outros. Por todo o território português se espalharam os festejos do Entrudo, num lado chamados «Bailinhos» e «Queima do Judas», noutros «Enterro do João» e «Serração da Velha». E se ali se junta a gente para ouvir as sátiras e as vindictas – gritadas ou dramatizadas, mais além há quem fuja como pode das investidas de foliões mascarados.

Comungando magias

Vá lá saber-se porquê, aquilo que muitas vezes se reputa de «só nosso» – e, portanto, garante de genuinidade – é muitas vezes comum a povos que comungam invernos e infernos, sejam os do clima ou os da desigualdade de rendimento, comungando igualmente as magias com que combatem os obstáculos. Num estudo dedicado à problemática do Entrudo no contexto europeu, Ernesto Veiga de Oliveira confronta as festividades carnavalescas daqui com celebrações da distante Rússia, da mais próxima França, da mais afastada Transilvânia, sendo essa comunhão de traços um elemento mais da parecença dos povos quando se trata de despedir a privação e celebrar a esperança. Por todos os lados é o significado reprodutor da terra o que está em causa, sob a forma de elementos mágicos relacionados com as acções através das quais os humanos interferem na vontade dos deuses. É que por cá, como por lá, a compreensão do funcionamento do Cosmos foi precedida pelos acreditares em deuses caprichosos, sensíveis à dádiva e ao sacrifício, fosse o de uma vida humana ou de um boneco de palha. E que ali, como aqui, se percebeu a importância do «novo» na reprodução do que é vivo e garantia de continuidade, remetendo-se para o chocalhar dos corpos a centelha do seu encontro.

Ao calendário natural quiseram os humanos juntar o calendário dos seus desejos, em que o divertimento era também esperança. Foi assim no Brasil colonial, ao que Chico Buarque chamou o «direito a uma alegria fugaz, uma ofegante epidemia que se chamava carnaval», assim foi nas terras portuguesas, «situado no início da estação rural, no limiar da Primavera, aparecendo como resíduo das remotas cerimónias de purificação e expulsão das forças malignas do Inverno, a licenciosidade prenunciando magicamente a alegria derivada da abundância que assim se prometia»*.

Cartaz turístico e produto de consumo? Talvez haja quem o queira assim. Mas Entrudo que tenha herdado as feições dos seus avós é o que combina a alegria colectiva com as vontades da esperança.

* Ernesto Veiga de Oliveira




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