Talvez um activo em risco

Correia da Fonseca

Era um pro­grama ha­bi­tado pela in­te­li­gência e que, trans­mi­tido pela RTP2 com­pre­en­si­vel­mente por volta da meia-noite dos do­mingos, ter­minou agora, es­go­tadas as treze emis­sões desde o início pre­vistas. In­ti­tu­lava-se «Raízes», nele não acon­tecia mais que uma con­versa entre Maria João Seixas e o prof. José Pedro Serra, e quase sempre isso era acon­tecer muito. Nesta úl­tima emissão, falou-se a dada al­tura da des­truição da bi­bli­o­teca de Ale­xan­dria, si­tuada no tempo há bem mais que um par de sé­culos, e foi então que José Pedro Serra re­feriu uma pro­jec­tada ou já por ele em­pre­en­dida «His­tória Mun­dial da Des­truição dos Li­vros». Não dei­xaram de ser então lem­brados os autos-de-fé nazis em que foram quei­mados, em am­bi­ente de si­nistra festa, não apenas os li­vros de Thomas Mann, como Maria João Seixas re­cordou, mas também obras de ou­tros au­tores ide­o­lo­gi­ca­mente mais à es­querda. E também de­verá ter sido re­fe­rida, ainda que sem as de­moras que o as­sunto jus­ti­fi­caria, a ins­ti­tu­ci­o­na­li­zada acção cen­sória du­rante a di­ta­dura que Abril der­rubou.

Outra «His­tória Mun­dial»

Por essa al­tura, talvez muitos te­les­pec­ta­dores te­nham re­cor­dado o «Fah­re­nheit 451», ro­mance de Ray Brad­bury, e/​ou a sua no­tável adap­tação ao ci­nema feita por Fran­çois Truf­faut. Era uma es­tória ter­rível, si­tuada entre a ad­ver­tência e a pre­visão, que talvez fi­casse bem como ca­pí­tulo úl­timo e já pro­fé­tico da tal «His­tória Mun­dial da Des­truição dos Li­vros» do pro­fessor José Pedro Serra. En­tre­tanto, porém, o que de­certo é o pior de tudo é que essa des­truição não é um caso de pes­si­mista «ficção ci­en­tí­fica»: pros­segue de facto na vida real, ainda que nem todos dêem por isso ou se pre­o­cupem. Quando se ad­mite que a lei­tura de li­vros nos ecrãs dos com­pu­ta­dores pode subs­ti­tuir a lei­tura de li­vros em papel sem perda de lei­tores em nú­mero e qua­li­dade, é de facto da des­truição dos li­vros que es­tamos a falar, se­me­lhan­te­mente ao modo como «e-mails» e «sms»s estão a acabar com as cartas tra­di­ci­o­nais ex­cepto quando elas mantêm valor do­cu­mental como acon­tece (ainda?) no cha­mado mundo dos ne­gó­cios e nas fun­ções ofi­ciais. E para ava­liar o que fez o livro pelo avanço ci­vi­li­za­ci­onal e pelo pro­gresso das gentes bas­tará talvez lem­brar o re­la­ti­va­mente breve pe­ríodo de tempo de­cor­rido entre Gu­ten­berg, fa­le­cido já na se­gunda me­tade do sé­culo XV, e o de­ci­sivo «boom» in­te­lec­tual do sé­culo XIX. Em ver­dade, trata-se de um pre­cioso ac­tivo hu­mano que pode estar ame­a­çado. É claro que o even­tual aban­dono do livro ou a sua de­ca­dência como ins­tru­mento cul­tural, isto é, como veí­culo de en­ten­di­mento do mundo e da vida, não im­plica ne­ces­sa­ri­a­mente o ad­vento da ig­no­rância como do­mi­na­dora de quase tudo, ainda que certas formas de ig­no­rância mas­ca­rada sejam há­beis a avançar. Porém, a ex­pressão «bar­bárie in­for­ma­ti­zada» ameaça por vezes vir a ter algum sig­ni­fi­cado con­creto. Em ver­dade, a ima­gi­nada «His­tória Mun­dial da Des­truição dos Li­vros» tem um sen­tido pro­fé­tico que só por le­vi­an­dade se des­va­lo­ri­zará. O que é in­qui­e­tante quando nos lem­bramos de que também po­deria ser ima­gi­nada uma «His­tória Mun­dial da Le­vi­an­dade Hu­mana».




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