Tragédia, raízes
Apenas em rodapé dos televisores, chegou a informação de que o número de mortos por afogamento nas águas do Mediterrâneo já ultrapassou o milhar. Chegámos a isto: a morte de mil criaturas que tinham olhos que viam, unhas que cresciam, cérebros que sonhavam, é reduzida a uma breve linha nos baixos de um ecrã e todo o resto continua como dantes. É claro que, se chamadas a pronunciarem-se sobre o facto, as vozes oficiais ou oficiosas garantem que se trata de uma grande tragédia e, provavelmente, acrescentam que de qualquer modo a Europa não pode acolher interminavelmente todas as multidões que, vindas de África, já não apenas do seu litoral Norte mas também já do seu interior, se encaminham em direcção da Europa como náufragos em busca de uma praia que lhes salvará as vidas. E o facto é que, pelo menos tendencialmente, essas vozes têm razão: por mais que o argumento repugne por tresandar a egoísmo num mundo onde permanentemente se ouve a pregação da solidariedade, é certo que a Europa, como aliás qualquer espaço sujeito a imigrações, tem uma espécie de lotação limitada cuja ultrapassagem implica consequências graves. Ainda mais grave, porém, é a condenação a permanecer num espaço dominado pela fome, pela peste e pela guerra, as três sinistras rainhas apocalípticas que dominam pelo menos grande parte do continente africano acima do Equador.
Agora com máscara
Acontece, contudo, que são insuficientes a mera verificação de que ocorre uma tragédia e o acto de a registar em forma de notícia: temos a reputação de sermos bichos racionais, no mínimo «um bípede com fala e sentimentos» como escreveu Torga, e daí decorre o dever de interrogarmos o que acontece, identificar-lhe as causas e providenciar no sentido de estancar a desgraça que não é flagelo disparado do alto por um céu cruel mas sim resultado de práticas muito terrenas. Sabe-se que o continente africano não é terra desolada de uma ponta a outra, bem pelo contrário, e que a sua capacidade para gerar meios de sobrevivência é de tal ordem que está desde há séculos a ser invadida, dominada e intensamente explorada por gentes vindas do Norte, primeiro da Europa e depois do outro lado do Atlântico, que encontraram em África fontes de gigantescos lucros embolsados por troca com a manutenção de condições de miséria para as populações autóctones. Sabe-se também que esse processo tem raízes que têm globalmente um nome: é o capitalismo/imperialismo explorador em benefício do qual, com pretextos umas vezes pretensamente piedosos e outras vezes desavergonhadamente infames, se fizeram guerras, cometeram crueldades, multiplicaram imposturas. E chegámos agora aqui: a um milhar de foragidos afogados no Mediterrâneo num período de tempo relativamente breve. A situação é de tal modo grave e indignante que começa a falar-se num «Plano Marshall para a África». Será ainda o capitalismo, agora com a máscara de uma solidariedade tardia. Mas é também o tácito reconhecimento de que lhe cabe a autoria do secular crime. Vigiemos, pois, esta sua fase. Para a compreendermos e, quanto necessário, denunciá-la.