Alexandre Cabral – itinerário de um resistente
LITERATURA Cumpre-se este mês, neste soalheiro Outono, o centenário de nascimento do escritor e ensaísta Alexandre Cabral, pseudónimo literário de José dos Santos Cabral. O autor nasceu em Lisboa em Outubro de 1917, falecendo em 1996. Viveu grande parte desse tempo pleno no Bairro de S. Miguel, freguesia de Alvalade.
Os autores do neorealismo crêem obstinadamente num futuro melhor
A assinalar a efeméride, o Museu do Neorealismo, em Vila Franca de Xira, teve patente no seu espaço principal, de 25 de Fev. a 25 de Jun. uma exposição da sua Vida e Obra, elaborada a partir do espólio do autor, mostra que percorreu, de forma abrangente e profusa, sob o mote Memórias de Um Resistente, o período mais fecundo da sua obra, não esquecendo o lutador e resistente antifascista. Também a Biblioteca Nacional tem patente uma mostra da obra de Alexandre Cabral. A URAP organizou no pretérito dia 11, nas instalações do Aljube (em cujas celas esteve preso por várias vezes o autor de Malta Brava), uma homenagem evocativa, que contou com a participação de Aguinaldo dos Santos Cabral, filho do escritor, Fernando Tavares Marques e Modesto Navarro.
A formação inicial, do que viria a ser um dos maiores especialistas da obra camiliana, começou no Instituto Militar dos Pupilos do Exército – «aquilo que sou – e de que me orgulho – devo-o à matriz que me enformou» –, instituição que o haveria de marcar no aspecto sensitivo e humano, experiência de vida e camaradagem que reflectirá em alguns dos seus livros de ficção e nesse incontornável testemunho autobiográfico que é Memórias de Um Resistente, texto que conseguiu ultrapassar as vigilantes malhas da censura marcelista, recorrendo no processo narrativo a algumas subtilezas da técnica discursiva. Livro escrito em 1968 (tendo nos primeiros projectos os títulos Itinerário de Um Resistente e Biografia de Uma Época) e publicado em 1970, é hoje considerado um documento indispensável para quem pretenda conhecer e aprofundar o que no plano cívico e cultural foram os anos mais violentos e ignóbeis do fascismo português e a vida daqueles que aos seus métodos se opuseram e resistiram.
Sabedor da necessidade de passar testemunho desses dias insanos, dos cercos que o salazarismo impunha a referências públicas, por mais subliminar, das lutas travadas diariamente contra a repressão, Alexandre Cabral deixa claro nas suas intrépidas memórias, essa inquietação geracional: «O Mário Sacramento na biografia crítica sobre o Fernando Namora, escreveu que “o futuro vai ter muita dificuldade em compreender o nosso tempo, peado de silêncios e semeado de hiatos que foi”. Ficaria muito feliz se estas “memórias”, um tanto mais ambiciosas do que pretende uma simples obra de ficção, conseguissem preencher alguns desses silêncios e hiatos...»1
Aproveitando o período em que trabalhou numa agência de publicidade, Cabral prosseguirá os seus estudos, licenciando-se em Ciências Histórico-Filosóficas, pela Faculdade de Letras de Lisboa.
É um escritor/jornalista precoce: aos dezanove anos funda A Voz da Mocidade, colabora e dinamiza, entre 1936/40, os jornais Movimento, Heraldo, Pensamento, Ecos do Alcôa, usando por vezes, nessas colaborações, o pseudónimo Z. Larbak, que manterá nos primeiros livros publicados em 1937, como Parque Mayer em Chamas, e Cinzas da Nossa Alma.
Escultor do neorealismo
Alexandre Cabral foi, enquanto jornalista, crítico literário, investigador e ficcionista, um dos mais dinâmicos e proficientes escultores do neorealismo e, afirma-o António Pedro Pita, uma das «personagens que deram ao aparelho cultural neorealista a dimensão e eficácia que se lhe reconhece».
É através da sua obra ficcional, do contacto que a partir dos anos 1940 trava com outros autores, nomeadamente Ferreira de Castro cuja obra admira e sobre a qual escreve (Como conheci o escritor Ferreira de Castro e Ferreira de Castro: o seu drama e a sua obra), mas sobretudo com os jovens escritores ligados ao movimento neorealista, que Alexandre Cabral se iniciará nessa descoberta do povo e das suas agruras, na denúncia das candentes injustiças sociais e na vontade de transformar, através da sageza das palavras e da acção política, a realidade dos dias cruéis. Não por acaso, os seus primeiros textos desse fecundo período são compilados num livro de contos que transporta no título uma determinante simbólica, um grito de afirmação, um projecto de luta e de futuro: O Sol Nascerá Um Dia (1942).
Com os seus camaradas de letras, de lutas e de sonhos, a geração que desencadeou o neorealismo amadureceu em público2, que nunca abandonou, como nunca se afastou do seu Partido de sempre, o PCP, percorreu os caminhos da resistência à ditadura, escreveu em jornais e revistas, polemizou, denunciou.
Desafiado pelo ensaísta e editor Augusta da Costa Dias, do qual se tornará grande amigo, inicia os seus estudos camilianos, publicando entre 1962/70 os quatro volumes das Polémicas de Camilo, construindo em torno desse espólio único do nosso romantismo uma obra ensaística ímpar na cultura portuguesa contemporânea, baseada na vasta obra de Camilo Castelo Branco. Alexandre Cabral, tornar-se-á no biógrafo de referência da obra camiliana. De tal modo essa investigação é intensa, diversa e profunda, num labor de absoluta entrega que por vezes o biógrafo parece confundir-se com «a alma do biografado», dado que o ensaísta, ao percorrer o espólio do escritor de Seide, esse complexo monumento literário e linguístico, descobre o criador que estrutura sob a estética geral do romantismo, os primeiros e fecundos sinais do realismo. São os realismos, as suas diversas vertentes, mais que a crítica do romantismo, que enfoca esse estudo e o transforma numa análise sagaz da obra camiliana e num projecto cultural ímpar, tarefa que culmina com a publicação de um título emblemático e indispensável que é o Dicionário de Camilo Castelo Branco, editado pela Caminho em 1989.
O ensaísta não se limitou à minuciosa análise literária da obra camiliana, foi às raízes desse labor, contextualizando tempos, lugares, circunstâncias históricas, sociais e políticas em que a obra de Camilo se fundou e expandiu; influências, a vida pessoal, a ultrapassagem dos códigos comportamentais, o amor por Ana Plácido, as teias que tecem os grandes dramas (reais ou ficcionados), o clima social oitocentista do Portugal profundo, os excessos da vida, a loucura, as transgressões: «Com efeito, qualquer que seja o local em que a acção se desenrola, qualquer que seja a classe ou o sexo da personagem, é fatal que a intriga, invariavelmente de índole amorosa, resulta de uma transgressão de princípios estabelecidos, (...) decorrentes da ordem social umas vezes, e outras da ordem moral e religiosa.»3
A primeira descoberta do neo-realismo foi o povo, escreveu Mário Dionísio no prefácio para a 3ª. edição de O Dia Cinzento e Outros Contos. O povo, essa imensa massa humana secularmente explorada, objectivamente considerada nas diferentes situações a que a mesma exploração a reduzira e reduzia (e reduz) e em que assentava todo o prestígio, se assim pode dizer-se, social e cultural, da sociedade em que vivíamos – e vivemos, só o neorealismo literário português no-lo conseguiu dar em toda a sua plenitude, consequências e complexidades, enquadrando-o e definindo-o nos referentes históricos, conceptuais e sócio-políticos, da segunda metade dos anos 1930, e seguintes, sob a orientação crítica e ideológica que o marxismo vinha imprimir ao discurso literário, pugnando por uma arte interventiva, revolucionária, comprometida com a realidade do seu tempo e pugnando pela sua transformação.
Parceiro e camarada
de todos os homens
Alexandre Cabral (1917), pertence, geracionalmente, a esse pujante núcleo central do nosso neorealismo: Joaquim Namorado (1914/1986), Mário Dionísio (1916/1993), Vergílio Ferreira (1916/1996, Jofre Amaral Nogueira (1917/1973), Joaquim Ferrer (1917/1994), Fernando Namora (1919/1989) e João José Cochofel (1919/1982). «Honro-me sobremaneira na companhia dos camaradas que pertencem à minha geração – que deu, como sabe, nomes ilustres – recuso que me integrem num determinado tempo histórico (estável em relação à noção de geração). Pelo contrário, procuro acompanhar a dinâmica dialéctica que faz com que nos sintamos parceiros e camaradas dos escritores mais recentes, o que quer dizer parceiro e camarada de todos os homens»4, dirá numa entrevista a Jacinto Baptista.
A ficção de Alexandre Cabral, que ele lamentava não ter sido alvo de atenção crítica mais demorada, inteiramente merecida, fixa um universo de vivências singulares, rocambolescas, dirá, desde os Pupilos do Exército, que abandonou aos 15 anos, à sua filiação no Partido, as prisões no Aljube, onde sempre quis estar em celas junto com os trabalhadores para «sentir menos a clausura»; a emigração por terras de África, no Congo, por exemplo, aventura que encetou com o seu amigo, o poeta Sidónio Muralha e lhe permitiu escrever Contos da Europa e da África (1947) e Histórias do Zaire (1956), além do romance Terra Quente (1953), livros que expressam de modo crítico as relações entre colonos e os povos nativos, regressando três anos após para mergulhar de novo na realidade portuguesa com um romance sobre os pescadores da pesca artesanal, Fonte da Telha (1949), seguindo-se os romances da maturidade criativa e literária, Malta Brava (1955), pelo qual perpassam algumas memórias do seu tempo dos Pupilos, À obra ensaística, ficcional, ao acervo memorialístico, devemos acrescentar os seus textos de intervenção política: José Marti e a Revolução Cubana e A Revolução Cubana e o Ódio do Imperialismo, sem esquecer os inúmeros artigos dispersos por jornais e revistas e os colóquios em que participou.
Escritor atento e preocupado
Entrevistado por Alves da Costa, para a revista Transtagana, à pergunta sobre as tendências da poesia contemporânea, responderá de modo claro e afirmativo: A meu ver, na poesia contemporânea distinguem-se duas tendências: uma, rica de conteúdo e de interesse humano, exteriorizada pelos poetas do Novo Cancioneiro; a outra, que eu considero uma poesia de deserção, vulgarizada pela revista Távola Redonda. (...) Os poetas que escreveram para o Novo Cancioneiro, procuraram solidarizar a Poesia com os problemas do momento português. Todos sabem que a sua missão de poetas deve andar intimamente relacionada com os problemas e aspirações do homem. Os seus temas são arrancados às próprias raízes da vida. (...) Em meu entender, apenas considero de valor o caso individual do escritor que se enquadre nos grandes problemas colectivos. Os autores do neorealismo, crêem obstinadamente num futuro melhor, confiados no esforço colectivo do homem.5
Alexandre Cabral era um escritor atento e preocupado com as questões centrais do seu tempo, inquieto, culto, sagaz, inquiridor. Sabia, como os seus companheiros de jornada, que a componente ideológica da função literária e criativa era pertinente para os autores que combatiam o totalitarismo salazarento, que a acção crítica, a par da criação literária, não era, no conjunto desse combate, despiciendo pormenor.
Defensor das dinâmicas estruturais da dialéctica, sabia que a relação entre ideologia e literatura é de conflito e interrogação permanentes, pela própria condição subjectiva, fragmentária e interactiva da criação literária e dos seus pressupostos teóricos e estéticos, daí os ideólogos do neorealismo como Mário Dionísio, Alexandre Cabral, Augusto da Costa Dias, terem praticado a actividade crítica, sabendo que essa função era substantiva como suporte protector das liberdades criativas, estéticas, metodológicas, de sentido e essência, face aos mecanismos opressores constituídos para impedir a difusão das obras comprometidas com ideais libertários.
A acção cultural e cívica de Alexandre Cabral não se limitou à literatura, ao jornalismo (foi, também, redactor de O Diário), ao ensaio, à dimensão sem par nos estudos camilianos, ou como elemento preponderante na criação da Sociedade Portuguesa de Escritores, a cuja direcção, presidida por Aquilino Ribeiro, pertenceu; como tradutor, devemos-lhe a revelação de autores marcantes na história da literatura contemporânea: Claude Roy, Anatole France, Mikail Sadoveanu, Jaroslav Hasek
A História Singela do Calcinhas, um dos contos integrantes do livro O Sol Nascerá Um Dia, reflecte de modo exemplar o que foi o percurso do escritor Alexandre Cabral e dos autores da notável geração a que pertenceu, esse sentido de razão que a razão desconhece, uma força de prodígio, um apelo irresistível, que vai de homem a homem, que muda, mudará os homens e as coisas6, quando um dia, por fim, o sol nascer.
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Bibliografia: Obras de Alexandre Cabral; Alexandre Cabral, Memória de Um Resistente (catálogo da exposição organizada pelo Museu do Neorrelismo; História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes; A Literatura Contemporânea, de Eduardo Iáñez; Literatura e Luta de Classes, de Augusto da Costa Dias.
1 Alexandre Cabral, Memórias de um Resistente, 1970, p.103 – citado por António Pedro Pita, catálogo da Exposição «Memória de Um Resistente» – Museu do Neorealismo, 2017
2 António Pedro Pita, idem
3 Alexandre Cabral, prefácio a Polémicas de Camilo, 1970, p.11
4 Jacinto Baptista (org.), «O ofício de escrever», in Diário Popular, Lisboa, 27 Março 1975
5 Alguns momentos de conversa com o escritor Alexandre Cabral/Alves da Costa, in Revista Transtagana, nº. 198-1999, p. 3, Lisboa 1950
6 Mário Dionísio, prefácio a Poemas Completos, de Manuel da Fonseca, p.38, Portugália, Lisboa, 1967