Ignorância e pedanteria

Albano Nunes

Dizer de cátedra aquilo que muito bem entende ou lhe é encomendado

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Elisio Estanque, «O partido bipolar: uma crítica de esquerda», Público,31.08.17

O PCP, a sua história, o seu insubstituível papel na vida social e política nacional incomoda e faz inveja a muita gente. À direita e à «esquerda», nomeadamente a uma «esquerda» de que se reclama Elísio Estanque (EE) como mostra o seu artigo «O partido bipolar: uma crítica de esquerda» (Público de 31.08.17) curiosamente publicado na véspera da abertura da Festa do Avante!. Mas não fosse alguém confundir o seu escrito com uma vulgar diatribe e intriga anti-comunista apresenta-o como uma «crítica de esquerda» insinuando a autoridade de quem sabe do que fala para melhor fazer passar o propósito que percorre todo o seu artigo: introduzir a dúvida e a divisão em relação à direcção e à orientação do Partido, seja em torno da sua definição ideológica (a «velha cartilha marxista-leninista» relativamente à qual «muitos militantes comunistas se interrogam no seu íntimo») seja quanto à posição em relação à actual solução política (com a «incomodidade de sectores da «linha dura» com o facto de o partido se ter tornado “muleta» do Governo PS»).

Uma tal desfaçatez deve ficar registada pois, vindo de alguém que se reclama da pureza e clarividência de «uma esquerda heterodoxa» que «denúncia a ortodoxia, seja ela qual for», ela persegue o velho sonho dos adversários e inimigos do PCP de, para além do propósito de denegrir a sua imagem, procurar provocar dúvidas e clivagens internas que enfraqueçam a temida força organizada e a capacidade de intervenção do PCP.

Para atingir tão ambiciosos objectivos EE vê-se obrigado a reconhecer e dá-se mesmo ares de respeito pela história e indiscutíveis méritos da acção do PCP, alguns dos quais enumera. Nisso EE não é propriamente inovador. Nem nisso nem quando pretende apresentar a política do PCP na actual fase da vida política portuguesa (que define como «um comportamento responsável e pragmático no apoio ao Governo») como incoerente e contraditória com uma ideologia oficial caduca, tentando colar ao PCP o rótulo desqualificador de «partido bipolar». Uma tal manobra deve ser frontalmente desmascarada como visando minar a confiança das massas naquele que é um dos mais importantes patrimónios do Partido: a sua coerência, a sua política de verdade, a face limpa de quem é respeitado por dizer o que pensa e fazer o que promete, o seu único e identitário compromisso com a classe operária, com os trabalhadores, com o povo português.

Creio que estas duas operações constituem o conteúdo mais grave do pedante artigo de EE que, lampeiro, se aproveita da sua auréola de sociólogo e do espaço de que regularmente dispõe na comunicação social dominante para dizer de cátedra aquilo que muito bem entende ou lhe é encomendado.

Em sintonia

Mas é ainda necessário chamar a tenção para a superficialidade e ignorância revelada pelo autor em relação ao PCP, ao seu Programa e à sua concepção de sociedade socialista para Portugal, à sua rejeição de «modelos» de revolução e de socialismo, ao princípio de definir a sua linha política e programática na base da análise concreta da realidade concreta da sociedade portuguesa, às apreciações do XIII e XIV Congressos do Partido quanto às causas e consequências das derrotas do socialismo na URSS e no Leste da Europa.

Superficialidade e ignorância que se revelam em particular em relação a questões básicas da ideologia e da identidade comunista, a começar pelo conceito de marxismo-leninismo e pelo modo como o PCP o interpreta e aplica: «concepção materialista e dialéctica do mundo, instrumento científico de análise da realidade e guia para a acção que constantemente se enriquece e renova dando resposta aos novos fenómenos, situações, processos e tendências de desenvolvimento. Em ligação com a prática e com o incessante progresso dos conhecimentos, esta concepção do mundo é necessariamente criadora, e por isso contrária à dogmatização assim como à revisão oportunista dos seus princípios e conceitos fundamentais» (artigo 2.º dos Estatutos do PCP).

Compreende-se que – essa é um velha e frustrada pretensão dos adversários e inimigos do PCP – EE gostasse que o PCP renegasse a sua identidade revolucionária e se desfizesse (para seu bem, claro) da base teórica do marxismo-leninismo, do socialismo científico, porque assim, abdicando de uma das seis características básicas da sua identidade, deixaria de ser a força que tem sido e é. A linha «reformista» do capitalismo que EE preconiza e em nome do qual esgrime teria então o caminho livre, o PCP seria neutralizado como força necessária à superação revolucionária do capitalismo e à construção de uma nova sociedade sem exploração e opressão capitalista.

Quanto ao ataque de EE à Revolução de Outubro nada de novo. Ele está em sintonia com muitos outros politólogos e comentadores encartados, porta-vozes da posição da classe dominante, que fazem hoje o que desde 1917 sempre fizeram: lançar veneno e ódio sobre o maior acontecimento revolucionário da história da humanidade para desacreditar o socialismo e o próprio ideal comunista. E nisto EE não deixa os seu créditos por mãos alheias. Esgrimindo contra o conceito marxista de revolução e terçando armas pelo «reformismo» («radical», claro), EE não se poupa na calúnia reduzindo o poder soviético «a um sistema repressivo, desumano e persecutório, pior do que o jacobinismo» e acusando Lénine, o genial obreiro dos dez dias que abalaram o mundo de «práticas centralistas e despóticas». Churchil, que sonhava em matar o comunismo no berço, não diria melhor. Nem melhor diriam aqueles que por essa Europa fora estão a reabilitar o fascismo, a ilegalizar partidos comunistas, a tentar criminalizar o próprio ideal comunista.




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