A serenidade nostálgica da ironia

Domingos Lobo

Portefólio é um lugar de encontro geracional, de afectos e das sombras

Lemos Sérgio de Sousa e sabemos haver nessa escrita uma segurança que lhe vem do apuro da linguagem, da estrutura clássica da narrativa, com laivos de desvio que remoçam o estilo; do modo alargado e profundo de abordagem do seu universo ficcional, qual seja a análise dos tiques e idiossincrasias de uma certa burguesia urbana, fazendo-o ora com assertiva brandura, ora com cáustica, desarmante ironia. Crónicas em fragmentos, em pícaro suave, de uma Lisboa remansada que está em vias de perder-se, a lembrar, nesse voo rasante sobre os pecadilhos da burguesia, as crónicas de José Gomes Ferreira de O Mundo dos Outros e alguns contos de Maria Judite de Carvalho.

Há na escrita de Sérgio de Sousa heranças referenciais de muito romance percorrido (somos todos ladrões que roubamos a ladrões); da melhor safra da geração de 70, aos clássicos russos e franceses, a que se juntam contemporâneos de várias e seleccionadas colheitas, até aos seus companheiros de jornada, sobre os quais produziu demorada incursão reflexiva, cívica e literária que ele, com rigorosa acutilância, verteu nos ensaios que constituem esse magnífico roteiro de leituras que é Comunistas Escritores.

A escrita de Sérgio de Sousa é, na sua aparente secura, sempre exigente e rigorosa, mas na qual, cortando o vértice aparentemente rígido da dominante discursiva que uma primeira abordagem da sua obra possa suscitar, encontramos uma escrita envolvente, um léxico modelar, um modo lento e circunstanciado de contar, de sorver o húmus das palavras, de dizer o desamor, o vazio, a hipocrisia, a ganga dos afectos, de inscrever parábolas sobre a usura, a injustiça social, as traições, a dignidade de lutar por um dia de sol, a farsa letal do capitalismo.

Portefólio, o novo livro de contos de Sérgio de Sousa, que vem juntar-se a outras incursões do autor neste difícil, e pouco amado, género literário (Na senda dos Utopistas; Por exemplo, um escritor; O real e o fantástico), contém nos seus momentos mais expressivos e resolutos, a marca apodíctica e identitária do autor, nas duas vertentes discursivas que fundem esse universo conceptual: a visão social e a condição feminina, sendo esta última prenhe de um desarmante e subversor pícaro/erótico, um código que percorre as águas da libertação sexual da mulher, pela qual perpassam subtis sinais de Manuel Teixeira Gomes, e a primeira constituindo-se acutilante crítica sobre o real, e lúcida, sagaz denúncia das injustiças que tolhem este nosso tempo.

A escrita de Sérgio de Sousa é a de quem, investindo o acervo memorialístico, busca nesse afã (e todos sabemos como a memória nos dá uma trabalheira dos demónios) recuperar, pelo pícaro barroco, pela matriz identitária, os restos de uma cultura a derruir. Em alguns dos textos que constituem este Portefólio o autor integra na sua concepção uma técnica de liberdade formal, integrando estes contos, no plano estético, próximos da contemporaneidade dado que rompem com a rigidez aristotélica. Neste processo, Sérgio aproxima-se de Barthes e do nouveau roman, dado que é pela dispersão que este modo narrativo se insinua, introduzindo na diegese uma pluralidade de «vozes» como se de esboços de romances a haver se tratasse. Alguns dos contos lançam pistas em vários sentidos, parecendo-me não esgotados neste pessoalíssimo exercício (alguns contos, de tão exímios, sabem «a pouco»), a justificarem mais ampla respiração.

Dou, como exemplo, para espevitar a curiosidade a promitentes leitores, nota sobre três dos contos incluídos neste Portefólio.

A leitura

Pecados íntimos e públicas virtudes, o desnudar da hipocrisia, como se estivéssemos num romance de Jane Austen. Uma atmosfera à século XIX, com cerimonial, rotinas, encenação, rituais que ainda permanecem em algumas franjas da burguesia culta; a leitura do folhetim do Diário de Notícias às criadas define a abertura de hábitos muito liberais, mas onde os tiques de classe permanecem intocáveis. O remate final, recorrendo ao erótico bocaciano, é soberbo.

Género

Texto soberbo sobre a condição da mulher, revelador do avanço que, a partir dos anos 1960 e das lutas então encetadas, se registou nas relações entre os géneros. Os diálogos são feitos de interioridade, de simulacros, de rebeldia: O pai não é inválido; porque é que a mãe lhe descasca a fruta? O desarmante final. A ironia a funcionar em pleno.

Natália

Conto a percorrer as nossas memórias mais doridas: a guerra nas colónias, as sevícias da PIDE, livros e canções que fizeram o tempo do nosso crescimento e, subtilmente, nos moldaram. Os receios e o desejo, os valores que nos estruturavam, o respeito pelo outro, os medos que nos mordiam como feras no gorgolar das veias.

Um final erótico bem conseguido, com um por aí pode, inesperado.

Portefólio é um lugar de encontro geracional, de afectos e das sombras que ainda hoje nos magoam, também de uma vertigem luminosa sobre o tempo que nos é dado viver. Irónico e perspicaz, este livro vale todo o tempo que quisermos dedicar-lhe – porque o faz, impressivamente, crescer.

 Portefólio, de Sérgio de Sousa – Edição Página a Página/2017

 



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