Uma estátua confederada nunca é oca

António Santos

RA­CISMO «Ge­orge Washington também tinha es­cravos. Vamos re­tirar as es­tá­tuas de Ge­orge Washington?» A per­gunta de Trump, du­rante uma alu­ci­nante con­fe­rência de im­prensa, abriu a caixa de Pan­dora.

A classe vem em pri­meiro lugar mas o ra­cismo não vem em se­gundo

No res­caldo da marcha ne­o­nazi em Char­lot­tes­ville, na Vir­gínia, a re­volta do pre­si­dente dos EUA não foi di­ri­gida contra os ter­ro­ristas que ma­taram uma pessoa e fe­riram vá­rias de­zenas, mas contra a re­ti­rada de es­tá­tuas con­fe­de­radas. «Triste por ver a his­tória e a cul­tura do nosso grande país serem des­truídas com a re­moção das nossas lindas es­tá­tuas», es­creveu num de muitos tweets in­fla­mados sobre a «pre­ser­vação da cul­tura su­lista» e a «be­leza dos mo­nu­mentos» de­di­cados aos par­ti­dá­rios da es­cra­va­tura que per­deram a guerra civil em 1865.

As mesmas ban­deiras ha­viam sido pre­texto para a marcha nazi que, sob o lema «unir a di­reita», juntou em Char­lot­tes­ville uma mis­ce­lânea de mi­lí­cias ar­madas com me­tra­lha­doras, fas­cistas alt-right da era di­gital, su­pre­ma­cistas, ne­o­con­fe­de­rados e ou­tros ra­cistas de di­versas de­no­mi­na­ções para pro­testar contra a re­moção da es­tátua do ge­neral con­fe­de­rado Ro­bert Lee. Pri­meiro, Trump re­cusou-se a con­denar o nazi que atirou um au­to­móvel contra a mul­tidão de ma­ni­fes­tantes an­ti­fas­cistas. Sem nunca uti­lizar a pa­lavra «ter­ro­rismo», o pre­si­dente con­denou a «vi­o­lência de muitos lados» e frisou que, entre os nazis, «havia gente muito boa». De­pois, quase obri­gado, leu de um papel que con­de­nava os nazis. No dia se­guinte, já sem papel, deu o dito por não dito e apontou o dedo à es­querda. A am­bi­va­lência do pre­si­dente sa­cudiu, em me­didas iguais de sur­presa e in­dig­nação, todo o es­pectro po­lí­tico. O pro­blema, con­tudo, não se re­sume às pa­la­vras he­di­ondas de Trump, mas à ar­qui­tec­tura do sis­tema he­di­ondo que ele re­pre­senta; o pro­blema é que, como disse Trump, Washington e Jef­ferson também ti­nham es­cravos.

Ra­cismo e ca­pi­ta­lismo

Steve Di­Mayo é mi­li­tante da Red­neck Re­volt, uma or­ga­ni­zação que, res­ga­tando a eti­mo­logia da ex­pressão red­neck (pes­coço ver­melho, de tra­ba­lhar ao sol) in­tervém junto das po­pu­la­ções mais po­bres da Amé­rica rural para re­cu­perar a tra­dição de luta das co­mu­ni­dades que os de­mo­cratas ape­lidam de «white trash» [«lixo branco»]. «Só tive tempo de saltar», disse-me, «es­tava ao te­le­fone e só me aper­cebi quando havia corpos a voar à minha frente. Um dos carros atro­pelou uma ra­pa­riga ao meu lado e ela des­maiou. Achei que es­tava morta».

«As es­tá­tuas têm de vir abaixo ou vão ser usadas para nos di­vidir ainda mais. O Ses­sions [pro­cu­rador-geral dos EUA] está a matar a Acção Afir­ma­tiva e aqui no Sul, sem isso, tens a se­gre­gação outra vez. Só a luta é que o pode evitar. Es­quece o resto. O go­ver­nador [Terry McAu­liffe, da Vir­gínia] quando de­cretou o es­tado de emer­gência, foi para mandar 1500 po­lí­cias atacar-nos. Os nazis são amigos dele».

Po­sição se­me­lhante tem Ta­kiya Thompson, es­tu­dante de 22 anos da Ca­ro­lina do Norte que, na se­mana pas­sada, pro­ta­go­nizou um vídeo que chegou às te­le­vi­sões de todo o mundo. Foi du­rante uma ma­ni­fes­tação an­ti­fas­cista em Durham, uma das 700 con­vo­cadas de costa a costa. As ima­gens mos­tram Ta­kiya a trepar à es­tátua de um sol­dado con­fe­de­rado e a prender-lhe uma corda. As massas fazem o resto.

«Foi um mo­mento es­pon­tâneo. Havia mu­lheres ne­gras, imi­grantes, co­mu­nistas, mas também li­be­rais e pes­soas com pouca cons­ci­ência po­lí­tica. Os de­mo­cratas gri­tavam “O amor vence o ódio”, nós gri­tá­vamos “A po­lícia e o Klan andam de mãos dadas”», contou-me a jovem mi­li­tante do Par­tido Mundo Ope­rário, «A po­lícia ame­ri­cana evo­luiu a partir das pa­tru­lhas que cap­tu­ravam es­cravos fo­ra­gidos. O ra­cismo está em­bu­tido nas raízes mais pro­fundas da so­ci­e­dade ame­ri­cana. É por isso que para com­bater o ca­pi­ta­lismo há que com­bater o ra­cismo. Ra­cismo e ca­pi­ta­lismo che­garam aos EUA ao mesmo tempo, são dois fruto da es­cra­va­tura. A questão da classe vem em pri­meiro lugar, mas a questão do ra­cismo não vem em se­gundo. Eu olho para as lutas de todos os opri­midos como uma só luta. Sou filha de um imi­grante ja­mai­cano e sei bem que o ra­cismo é um ins­tru­mento do sis­tema. Trump não é uma ano­malia do sis­tema, ele é o sis­tema com uma re­tó­rica mais feia. Os de­mo­cratas fazem o mesmo, mas com um sor­riso».

Apesar de ser vi­sível no vídeo que a es­tátua é der­ru­bada por de­zenas de pes­soas, só sete foram de­tidas e acu­sadas. «Vou ser pre­sente a tri­bunal no dia 12 de Se­tembro», en­qua­drou Ta­kiya, «Querem fazer de nós presos po­lí­ticos. Eu sei que as leis desta nação não foram feitas para pro­teger pes­soas como eu, com o meu as­pecto».

Nos dias após a de­tenção de Ta­kiya e dos seus ca­ma­radas, mais de du­zentas pes­soas di­ri­giram-se ao xe­rife de Durham para con­fes­sarem terem sido elas a puxar a corda. A ver­dade é que não foram du­zentos: foram mi­lhões a puxar a corda. Seria bom que o xe­rife de Durham o sou­besse e re­gis­tasse, num longo auto de ocor­rência.


Es­tá­tuas do terror

Mais de mil mo­nu­mentos aos con­fe­de­rados sub­sistem em 2017. São, quase todos, pro­duto da cha­mada «era pós-re­cons­trução», uma fase po­lí­tica entre o úl­timo quartel do sé­culo XIX e 1920 em que foram des­man­te­ladas muitas con­quistas dos an­tigos es­cravos. O pro­pó­sito da cons­trução das es­tá­tuas não era, nem nunca foi, a pre­ser­vação da His­tória, mas a ins­tau­ração de um clima de terror ra­cista para fa­ci­litar a en­trada em cena da se­gre­gação Jim Crow.




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