Quatro anotações sobre incêndios e pequena propriedade
FLORESTA O justo clamor popular que se seguiu à tragédia dos recentes incêndios que devastaram diversos concelhos do centro do País não pode levar a precipitações que resultem no agravamento dos problemas que motivaram os fogos.
A Reforma acelera o esbulho da pequena propriedade
A propósito dos trágicos acontecimentos de Pedrógão Grande e concelhos vizinhos, e do seu cortejo de vítimas e destruição, regressou uma tese velha, que ressuscita de cada vez que é necessário tapar as responsabilidades da política de direita nas opções que levaram ao desordenamento florestal, à falta de limpeza das matas, ao despovoamento e ao abandono do mundo rural: a culpa é das terras sem dono conhecido, dos que não sabem o que herdaram e por isso têm tudo a monte – teoria na qual o Governo tinha já sustentado as propostas de lei 66 e 69 de 2016, de criação do Banco de Terras e de execução do Cadastro Simplificado, em debate no Parlamento. Algumas anotações sobre o tema.
Primeiro, sabendo-se a origem da maioria dos incêndios não se conhece nenhum estudo que diga que ela está em terras sem dono conhecido. Mais, os incêndios do mês de Junho lavraram, no essencial, em terrenos cultivados, cuja propriedade se conhece bem. Acresce que desde 2007 está decidido realizar experiências-piloto de execução do cadastro em treze concelhos cujos resultados e avaliação não se conhecem. E o pouco que se conhece (relativo a Oliveira do Hospital) não autoriza a conclusão de que haverá uma larga parcela do território sem dono conhecido.
O que aconteceu foi que, por não haver meios no terreno nem apoios aos proprietários, estes não os foram cadastrar. Apenas isso. Foi nesse sentido que a Assembleia da República aprovou, por proposta do PCP, uma resolução que recomenda ao Governo a avaliação urgente das experiências-piloto no âmbito do cadastro predial e realização do cadastro rústico em Portugal, com equipas no terreno e dotando os serviços públicos dos técnicos de cadastro necessários.
Esbulho aos pequenos proprietários
Segundo, havendo na legislação portuguesa (designadamente no Código Civil) a definição clara de que o que não tiver dono conhecido é propriedade do Estado, a proposta do Governo promove o esbulho dos pequenos e médios proprietários que pelas mais variadas razões não procedam ao cadastro. Tal atingiria principalmente idosos, que não têm acesso às modernas fontes de informação, e os que foram empurrados para longe das suas terras. Considerar que todos os prédios que não forem cadastrados no prazo de dois anos não têm dono conhecido e reverterão para a Bolsa de Terras, mesmo que regularmente registados nas finanças e na matriz, dá bem a dimensão do conflito com a pequena propriedade.
Na prática, depois de se ter promovido as políticas que são responsáveis pelo abandono, transfere-se para os pequenos proprietários mais um problema, com a possibilidade de os prédios serem entregues a terceiros – o BE fala mesmo em arrendamento compulsivo –, tendo de pagar benfeitorias que viessem a ser realizadas pelos novos ocupantes. A filosofia que está por trás desta opção é a do prosseguimento da concentração da propriedade, escondendo-se que o que está na origem da ausência de investimento na gestão da floresta é o baixo preço pago pela madeira, que tem servido exactamente aos que querem que a terra seja ainda mais concentrada.
Terceiro, não se conhece a opinião das entidades que lidam com estas questões. O que pensam os serviços de Registo e Notariado, o Instituto Geográfico de Portugal, a Autoridade Tributária e Aduaneira? Que contributo do Colégio Nacional de Engenharia Geográfica e do Colégio Nacional de Engenharia Florestal, da Ordem dos Engenheiros? Não se conhecem mesmo os resultados do trabalho produzido pelo Grupo de Trabalho (DGT, IRN, ATA, ICNF) criado para o efeito, que deveria estar concluído até 30 de Abril. Mais, o Governo parece pretender ignorar os registos já existentes, que podem constituir a base deste trabalho hercúleo.
Meios são necessários
Quarto, a proposta do Governo não prevê um cêntimo para uma tarefa cujos custos se estimam em 700 milhões de euros. Sabendo-se que a propriedade é uma realidade muito móvel, admitindo-se que existam inúmeros conflitos quanto à propriedade e aos seus limites, não estão previstas equipas com meios técnicos e financeiros para, no terreno, resolver com os diversos interessados os inúmeros problemas que surgirão.
Na Assembleia da República, foi decidido debater à pressa o conjunto das propostas da chamada Reforma Florestal. O justo clamor popular que se segue a cada tragédia o que exige não é precipitação, mas a ponderação necessária para que a legislação que se produza seja mesmo para aplicar.
Uma mais profunda reflexão sobre o cadastro e as terras sem dono conhecido não só não impede que se avance em todas as outras matérias que fazem falta à floresta, assim o Governo disponibilize os meios para tal, como, ao invés de atrasar essa tarefa, só a poderá acelerar, assim as decisões correspondam às necessidades do País e ao interesse dos pequenos e médios proprietários e produtores florestais.