A herança

Anabela Fino

Depois de ter passado mais de ano e meio a anunciar a chegada do diabo, única e inexorável perspectiva reservada às ingratas massas que em fatídico dia de ida às urnas reincidiram no despautério – sim, que a coisa nem sequer é nova – de dar à Assembleia da República uma composição que permitiu alinhamentos conducentes a uma nova situação política, depois desses longos meses, dizia, eis que o PSD, num contorcionismo digno de registo, veio agora reclamar a paternidade não da desgraça que tanto havia apregoado e afinal não veio, mas do sucesso que todos dizem ser a saída de Portugal do Procedimento por Défice Excessivo (PDE).

Foi a nossa herança, foi a nossa herança, disse sem pudor Luís Montenegro, fazendo-se esquecido das vezes sem conta que o líder do seu partido, Passos Coelho, Maria Luís Albuquerque e demais correligionários garantiram para quem os quis ouvir (ou não querendo a isso foi obrigado, tal a repercussão nos órgãos de comunicação social dominantes) que a reversão de medidas que tomaram era um passo a mais para o caminho do abismo. Aumento de pensões? Desgraça. Aumento de salários? Fatal. Reposição de direitos? Despautério. E por aí adiante. Nem à lupa e com boa vontade se encontrará uma vez que seja o PSD a reconhecer que o empobrecimento geral da população, a verdadeira herança dos quatro anos do governo PSD/CDS, não foi o caminho para o «sucesso» que hoje, revertidas, ainda que muito insuficientemente, as suas políticas, diz ser o do País.

Também Cristas quis colher louros da ocorrência. Com o mesmo desplante com que se cola a tudo o que é iniciativa institucional mediática – já há quem pergunte «onde está o Wally?» – reivindicou a sua quota parte na saída do PDE e recomendou que a mesma seja encarada como uma «oportunidade» para diminuir dívida, aumentar emprego, melhorar serviços públicos e manter o «realismo» orçamental. Isto vindo de uma antiga ministra de um governo que aumentou a dívida, o desemprego e liquidou serviços públicos, para além de ter o recorde dos orçamentos rectificativos, seria hilariante se não fosse deprimente.

Como se isto não bastasse, PSD e CDS, mas não só, enchem a boca a falar do facto de Bruxelas ter reconhecido o «esforço de todos os portugueses», sem sequer se darem conta (?) da humilhação que tão alegremente assumem em nome do País. O que sabem, sem margem para dúvidas, como de resto até já Bruxelas reconheceu, é que nos anos de chumbo do protetorado da troika as desigualdades sociais se aprofundaram em Portugal, o que quer simplesmente dizer que os sacrifícios impostos a muitos serviram de facto para beneficiar uns poucos. Tal como sabem, e a nova situação demonstra, que o caminho que vinha a ser seguido não era, como ainda não é, o da justiça social por que os portugueses aspiram.

Se é de herança que se trata, a que interessa aos portugueses não é a deles, é a da Revolução de Abril.

 



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