As misérias do imperialismo no palco da arte

Gustavo Carneiro

Duas linguagens e duas abordagens para um mesmo problema

Estrearam recentemente nos palcos nacionais dois espectáculos que abordam o tão grave quanto actual problema dos refugiados: Tudo o que é Sólido Dissolve-se no Ar, de Cláudia Dias, e Migrantes, da Companhia de Teatro de Almada (texto de Matéi Visniec e encenação de Rodrigo Francisco). Com linguagens estéticas totalmente diversas e abordagens distintas à realidade que retratam – a primeira mergulha a fundo nas causas do problema palestiniano, ao passo que a segunda se centra sobretudo no calvário quotidiano de todos quantos, arriscando a vida, vêem na Europa a oportunidade de fugir à guerra e à pobreza –, ambas as peças tomam desassombradamente partido pelos oprimidos e denunciam a hipocrisia dos mandantes da «Europa civilizada» face a um problema para o qual contribuíram decisivamente.

Só por isso já valeriam a pena, em tempos marcados pelo ressurgimento em muitos países de forças racistas, xenófobas e fascistas e nos quais domina, no campo da cultura (crescentemente mercantilizado e precarizado), o discurso pretensamente apolítico e tantas vezes voltado sobre si mesmo. Não tinha afinal razão Safo de Lesbos quando escreveu que «perante a cólera nada é mais conveniente do que o silêncio?».

Ora, Tudo o que é Sólido Dissolve-se no Ar e Migrantes não ficam silenciosos face às misérias do mundo (ou, melhor dizendo, do capitalismo): assumem as dores dos explorados, suscitam solidariedades e, a primeira mais ainda do que a segunda, impelem à acção transformadora de uma realidade que cria injustiça, miséria, opressão e guerra.

Arte que transforma

A peça de Cláudia Dias – Teatro? Dança? Ambos? – é de um despojamento cénico tocante: duas pessoas silenciosas, um fio branco (que tanto é uma fronteira como um barco engolido por uma onda, o mundo que arde ou um vulto caído – Morto? Adormecido?), frases projectadas num ecrã e movimentos lentos, como lenta é a história do povo da Palestina, que constitui uma das maiores e mais antigas comunidades de refugiados do mundo, desde que, há quase 70 anos, viu a sua terra roubada, as suas aldeias apagadas do mapa e o seu país eternamente adiado; muitos, talvez mesmo a maioria, nunca viram ou pisaram a sua terra.

Com a forma e o conteúdo a potenciarem-se, Tudo o que é Sólido Dissolve-se no Ar denuncia de um modo sensível e incisivo a violência da ocupação e opressão israelitas e acompanha sucessivas vagas de refugiados palestinianos: em 1948, da Palestina ocupada para a Jordânia; daí para o Líbano, em 1967, e para a Síria, em 1982; e agora da Síria para qualquer outro lugar. Num espectáculo em que não há margem para confusão acerca de quem são, neste drama, os opressores e os oprimidos, exalta-se a resistência dos segundos, que é desde logo «tentar ser feliz apesar de tudo».

Migrantes, por seu lado, embora sem pôr o foco na denúncia das causas e responsáveis pela actual vaga de refugiados que chega à Europa vindos do Afeganistão, do Iraque, da Síria, da Líbia, da Somália, da Eritreia, nem por isso é menos dura na forma como atinge a sensibilidade do público: as arriscadas viagens em barcos sobrelotados e a morte no mar que espera muitos dos que nelas se aventuram; as redes de prostituição e o tráfico de órgãos; a sobre-exploração dos imigrantes e os muros, vedações e campos que os esperam em muitos dos países europeus são algumas das realidades denunciadas.

Haverá função mais nobre para a arte, que o compositor Fernando Lopes-Graça descrevia como sendo uma «expressão fremente da vida»?




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