Nada mais, nada menos

Anabela Fino

Os cidadãos Idália Serrão, Bagão Félix e Pedro Mota Soares foram ao cinema a convite do Expresso, ver «I, Daniel Blake», e ao que nos conta o jornal comoveram-se. O objectivo que presidiu à iniciativa foi o de debater o filme, que conta a história de um trabalhador britânico de 59 anos vítima de um ataque cardíaco que não consegue obter uma pensão de invalidez, com três ex-responsáveis pela Segurança Social (a primeira pelo PS e os dois outros pelo CDS).

Todos, como já se disse, se comoveram, como se comoverá qualquer cidadão confrontado com a coragem de um homem derrotado pelo sistema, expressa de forma lapidar numa simples frase: «O meu nome é Daniel Blake, sou um homem, não sou um cão, não sou um cliente, não sou um número. Exijo os meus direitos. Exijo que vocês me tratem com respeito. Eu, Daniel Blake, sou um cidadão, nada mais, nada menos».

Emoções à parte, o que nos fica da experiência do Expresso é no mínimo curioso. Primeiro, é que os cidadãos que assumem funções de governantes deixam de ser cidadãos, o que leva Mota Soares a dizer que é preciso «estarmos fora da máquina (...) para vermos as coisas com os olhos dos cidadãos». Segundo, que a culpa da desumanidade retratada no filme é da falta de preparação dos recursos humanos, para não dizer mesmo da porteira [«é a máquina que falha e no call center é preciso estar gente formada que conheça bem o sistema, que é grande e complexo», Mota Soares dixit], a par da burocracia instalada não se sabe bem (?) por quem e para quê. Terceiro, que «todos os políticos, autoridades, funcionários de serviços públicos e de serviços que têm uma relação muito forte com a população» devem ir mais vezes ao cinema ou no mínimo ir ver este filme, como recomenda Idália Serrão, para perceberem que um nome no papel corresponde a uma pessoa de carne e osso. Quarto, que os «bons» governantes, mesmo quando repetentes como Bagão Félix, só o são quando deixam de o ser porque ganham «com a experiência» e «sobretudo com a boa distância». Quanto ao sistema que tais dramas humanos cria, está claro, nada a apontar, como Mota Soares sublinha, garantindo que o que está em causa é a «prática do sistema».

Dá para desconfiar que estes cidadãos ex-governantes saíram do cinema a sacudir a água do capote. E não era da chuva.




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