Sentamo-nos para nos levantarmos

António Santos

Teria sido só mais uma par­tida de fu­tebol ame­ri­cano, aquela no pas­sado dia 26 de Agosto, que opôs os Green Bay Pac­kers aos San Fran­cisco 49ers. Mas eis que soa o hino e… «Ó, dizei, po­deis ver? À pri­meira luz da manhã?» Deus abençoe a Amé­rica! Entre o renque de atletas tão so­le­ne­mente le­van­tados, está um negro sen­tado «O que sau­damos, tão or­gu­lho­sa­mente? Na úl­tima luz do cre­pús­culo?».

Ter­mi­nada a dis­puta, Colin Ka­e­per­nick en­frentou o ba­ta­lhão de jor­na­listas. Es­tam­pada na t-shirt, uma fo­to­grafia de Fidel Castro com Mal­colm X. «Não me vou le­vantar para mos­trar or­gulho numa ban­deira que re­pre­senta um país que oprime os ne­gros. Para mim, isto é mais im­por­tante do que o fu­tebol e seria egoísta se vi­rasse a cara para não ver», ex­plicou o quar­ter­back da pri­meira liga ame­ri­cana, «há ca­dá­veres nas ruas e os as­sas­sinos vão para casa com li­cenças com ven­ci­mento», con­cluiu.

A re­acção da velha Amé­rica, con­fe­de­rada e Tor­que­mada, não se fez es­perar: foram or­ga­ni­zadas queimas de ca­mi­solas com o nome do jo­gador; os exe­cu­tivos da NFL (a liga na­ci­onal de fu­tebol ame­ri­cano) cha­maram-lhe «traidor» e afi­an­çaram que «Ka­e­per­nick é o jo­gador mais des­pre­zado dos EUA»; até Trump con­vidou o jo­gador a emi­grar: «Se não gosta deste país, por que não se muda para um de que goste mais?», su­geriu o can­di­dato re­pu­bli­cano à Casa Branca.

Pas­sados tantos sé­culos de sa­lutar con­vi­vência, os afro-ame­ri­canos ainda não foram ca­pazes de in­ventar uma única forma de pro­testo que não ir­rite pro­fun­da­mente este sis­tema pro­fun­da­mente ra­cista: se se ca­larem e se sen­tarem são trai­dores à pá­tria; se se le­van­tarem e gri­tarem por jus­tiça são de­tidos; se le­van­tarem as mãos e dis­serem que não con­se­guem res­pirar chamam-lhes agi­ta­dores; se cor­tarem uma es­trada são es­pan­cados; se le­varem uma t-shirt que diga «As vidas dos ne­gros im­portam» são acu­sados de pro­mover a «con­fli­tu­a­li­dade ra­cial». Por al­guma mis­te­riosa razão, nunca lhes ocorreu que, talvez, se pro­tes­tassem de uma forma que não in­co­mo­dasse nin­guém, al­guma coisa mu­daria...

A terra dos li­vres e o lar dos co­ra­josos

Ka­e­per­nick, in­di­fe­rente às cen­tenas de mi­lhares de ofensas ra­cistas des­pe­jadas em caixas de co­men­tá­rios um pouco por toda a In­ternet, não cedeu, con­ti­nu­ando o pro­testo em todos os jogos sub­se­quentes e en­fren­tando sempre a mesma fúria ra­cista. Mas então algo acon­teceu: dia após dia, jogo após jogo, o pro­testo de Ka­e­per­nick alas­trou a todo o país e a todas as com­pe­ti­ções des­por­tivas, das es­colas pre­pa­ra­tó­rias à pri­meira liga.

Ao longo das úl­timas três se­manas, jo­ga­dores dos Dolphins, dos Chiefs, dos Ti­tans, dos Broncos, dos Pa­triots, dos Rams… se­guiram o exemplo Ka­e­per­nick e boi­co­taram aquele hino in­si­di­o­sa­mente ra­cista, «Ne­nhum re­fúgio po­derá salvar o mer­ce­nário e o es­cravo do terror da fuga ou da es­cu­ridão do se­pulcro…».

Em nú­mero cres­cente, atletas afro-ame­ri­canos ajo­e­lham-se quando se de­viam le­vantar, calam-se quando de­viam cantar e le­vantam o punho di­reito, bem cer­rado, re­cu­pe­rando o gesto pro­testo dos cor­re­dores olím­picos John Carlos e Tommie Smith, de­vol­vendo ao des­porto a dig­ni­dade de Muhammad Ali, que um dia ex­plicou assim a sua re­cusa a com­bater no Vi­et­name: «Não tenho nada contra os vi­et­con­gues. Matá-los porquê? Nunca me cha­maram preto [nigger], nunca me lin­charam, nunca ati­çaram os cães contra mim, nunca me rou­baram a na­ci­o­na­li­dade, ou vi­o­laram e ma­taram a minha mãe e pai».

A onda de pro­testo es­palha-se agora pelas es­colas pú­blicas de todo o país. Es­tu­dantes do quinto ano ao En­sino Su­pe­rior juntam-se aos atletas pro­fis­si­o­nais para dar fi­nal­mente algum sen­tido à ra­ra­mente jus­ti­fi­cada letra de um hino que se diz ser «sobre a terra dos li­vres e o lar dos co­ra­josos».



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