Teria sido só mais uma partida de futebol americano, aquela no passado dia 26 de Agosto, que opôs os Green Bay Packers aos San Francisco 49ers. Mas eis que soa o hino e… «Ó, dizei, podeis ver? À primeira luz da manhã?» Deus abençoe a América! Entre o renque de atletas tão solenemente levantados, está um negro sentado «O que saudamos, tão orgulhosamente? Na última luz do crepúsculo?».
Terminada a disputa, Colin Kaepernick enfrentou o batalhão de jornalistas. Estampada na t-shirt, uma fotografia de Fidel Castro com Malcolm X. «Não me vou levantar para mostrar orgulho numa bandeira que representa um país que oprime os negros. Para mim, isto é mais importante do que o futebol e seria egoísta se virasse a cara para não ver», explicou o quarterback da primeira liga americana, «há cadáveres nas ruas e os assassinos vão para casa com licenças com vencimento», concluiu.
A reacção da velha América, confederada e Torquemada, não se fez esperar: foram organizadas queimas de camisolas com o nome do jogador; os executivos da NFL (a liga nacional de futebol americano) chamaram-lhe «traidor» e afiançaram que «Kaepernick é o jogador mais desprezado dos EUA»; até Trump convidou o jogador a emigrar: «Se não gosta deste país, por que não se muda para um de que goste mais?», sugeriu o candidato republicano à Casa Branca.
Passados tantos séculos de salutar convivência, os afro-americanos ainda não foram capazes de inventar uma única forma de protesto que não irrite profundamente este sistema profundamente racista: se se calarem e se sentarem são traidores à pátria; se se levantarem e gritarem por justiça são detidos; se levantarem as mãos e disserem que não conseguem respirar chamam-lhes agitadores; se cortarem uma estrada são espancados; se levarem uma t-shirt que diga «As vidas dos negros importam» são acusados de promover a «conflitualidade racial». Por alguma misteriosa razão, nunca lhes ocorreu que, talvez, se protestassem de uma forma que não incomodasse ninguém, alguma coisa mudaria...
A terra dos livres e o lar dos corajosos
Kaepernick, indiferente às centenas de milhares de ofensas racistas despejadas em caixas de comentários um pouco por toda a Internet, não cedeu, continuando o protesto em todos os jogos subsequentes e enfrentando sempre a mesma fúria racista. Mas então algo aconteceu: dia após dia, jogo após jogo, o protesto de Kaepernick alastrou a todo o país e a todas as competições desportivas, das escolas preparatórias à primeira liga.
Ao longo das últimas três semanas, jogadores dos Dolphins, dos Chiefs, dos Titans, dos Broncos, dos Patriots, dos Rams… seguiram o exemplo Kaepernick e boicotaram aquele hino insidiosamente racista, «Nenhum refúgio poderá salvar o mercenário e o escravo do terror da fuga ou da escuridão do sepulcro…».
Em número crescente, atletas afro-americanos ajoelham-se quando se deviam levantar, calam-se quando deviam cantar e levantam o punho direito, bem cerrado, recuperando o gesto protesto dos corredores olímpicos John Carlos e Tommie Smith, devolvendo ao desporto a dignidade de Muhammad Ali, que um dia explicou assim a sua recusa a combater no Vietname: «Não tenho nada contra os vietcongues. Matá-los porquê? Nunca me chamaram preto [nigger], nunca me lincharam, nunca atiçaram os cães contra mim, nunca me roubaram a nacionalidade, ou violaram e mataram a minha mãe e pai».
A onda de protesto espalha-se agora pelas escolas públicas de todo o país. Estudantes do quinto ano ao Ensino Superior juntam-se aos atletas profissionais para dar finalmente algum sentido à raramente justificada letra de um hino que se diz ser «sobre a terra dos livres e o lar dos corajosos».