- Nº 2233 (2016/09/15)

Sentamo-nos para nos levantarmos

Internacional

Teria sido só mais uma partida de futebol americano, aquela no passado dia 26 de Agosto, que opôs os Green Bay Packers aos San Francisco 49ers. Mas eis que soa o hino e… «Ó, dizei, podeis ver? À primeira luz da manhã?» Deus abençoe a América! Entre o renque de atletas tão solenemente levantados, está um negro sentado «O que saudamos, tão orgulhosamente? Na última luz do crepúsculo?».

Terminada a disputa, Colin Kaepernick enfrentou o batalhão de jornalistas. Estampada na t-shirt, uma fotografia de Fidel Castro com Malcolm X. «Não me vou levantar para mostrar orgulho numa bandeira que representa um país que oprime os negros. Para mim, isto é mais importante do que o futebol e seria egoísta se virasse a cara para não ver», explicou o quarterback da primeira liga americana, «há cadáveres nas ruas e os assassinos vão para casa com licenças com vencimento», concluiu.

A reacção da velha América, confederada e Torquemada, não se fez esperar: foram organizadas queimas de camisolas com o nome do jogador; os executivos da NFL (a liga nacional de futebol americano) chamaram-lhe «traidor» e afiançaram que «Kaepernick é o jogador mais desprezado dos EUA»; até Trump convidou o jogador a emigrar: «Se não gosta deste país, por que não se muda para um de que goste mais?», sugeriu o candidato republicano à Casa Branca.

Passados tantos séculos de salutar convivência, os afro-americanos ainda não foram capazes de inventar uma única forma de protesto que não irrite profundamente este sistema profundamente racista: se se calarem e se sentarem são traidores à pátria; se se levantarem e gritarem por justiça são detidos; se levantarem as mãos e disserem que não conseguem respirar chamam-lhes agitadores; se cortarem uma estrada são espancados; se levarem uma t-shirt que diga «As vidas dos negros importam» são acusados de promover a «conflitualidade racial». Por alguma misteriosa razão, nunca lhes ocorreu que, talvez, se protestassem de uma forma que não incomodasse ninguém, alguma coisa mudaria...

A terra dos livres e o lar dos corajosos

Kaepernick, indiferente às centenas de milhares de ofensas racistas despejadas em caixas de comentários um pouco por toda a Internet, não cedeu, continuando o protesto em todos os jogos subsequentes e enfrentando sempre a mesma fúria racista. Mas então algo aconteceu: dia após dia, jogo após jogo, o protesto de Kaepernick alastrou a todo o país e a todas as competições desportivas, das escolas preparatórias à primeira liga.

Ao longo das últimas três semanas, jogadores dos Dolphins, dos Chiefs, dos Titans, dos Broncos, dos Patriots, dos Rams… seguiram o exemplo Kaepernick e boicotaram aquele hino insidiosamente racista, «Nenhum refúgio poderá salvar o mercenário e o escravo do terror da fuga ou da escuridão do sepulcro…».

Em número crescente, atletas afro-americanos ajoelham-se quando se deviam levantar, calam-se quando deviam cantar e levantam o punho direito, bem cerrado, recuperando o gesto protesto dos corredores olímpicos John Carlos e Tommie Smith, devolvendo ao desporto a dignidade de Muhammad Ali, que um dia explicou assim a sua recusa a combater no Vietname: «Não tenho nada contra os vietcongues. Matá-los porquê? Nunca me chamaram preto [nigger], nunca me lincharam, nunca atiçaram os cães contra mim, nunca me roubaram a nacionalidade, ou violaram e mataram a minha mãe e pai».

A onda de protesto espalha-se agora pelas escolas públicas de todo o país. Estudantes do quinto ano ao Ensino Superior juntam-se aos atletas profissionais para dar finalmente algum sentido à raramente justificada letra de um hino que se diz ser «sobre a terra dos livres e o lar dos corajosos».

António Santos