Jogo sujo

Anabela Fino

O seminário luso-brasileiro de Direito que hoje termina em Lisboa com o debate do sugestivo tema «Constituição e Crise – A Constituição no contexto das crises política e económica» provocou um significativo bruaá nos dois lados do Atlântico e teve a particularidade de ficar marcado tanto pelas presenças como pelas ausências registadas.

Apresentado pelos organizadores como sendo «puramente académico» e não tendo «dimensão política», como afirmou o constitucionalista Jorge Miranda, o evento reuniu na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa algumas das figuras mais badaladas da direita política brasileira que nos últimos tempos se destacaram na sanha contra a presidente Dilma Rousseff, o que não deixa de ser curioso.

Não menos sui generis é o facto de uma boa parte dos distintos participantes que acorreram a Portugal para debitar sobre Direito e Constituição estarem indiciados pela Justiça brasileira por crimes de corrupção, entre outros, e fazerem parte da clique organizada que à revelia da Constituição do seu país se propõe levar a cabo um verdadeiro golpe de estado para destituir a presidente democraticamente eleita e contra a qual não impende qualquer acusação de crime de responsabilidade.

Igualmente peculiar é a data escolhida para este evento «puramente académico» e sem «dimensão política», a saber, de 29 a 31 de Março. É difícil de engolir que com tanto académico e tanto político concentrado por metro quadrado a nenhum tenha ocorrido a simbologia da data, mais a mais estando em debate um tema como «Constituição e crise»: faz hoje precisamente 52 anos que ocorreu o golpe militar que derrubou o presidente eleito João Goulart e instaurou no Brasil uma ditadura militar que durante 21 anos prendeu, matou, torturou, explorou o povo e cerceou os seus mais elementares direitos. Há quem acredite em coincidências, é certo, mas quando nas ruas de São Paulo e de outras grandes metrópoles os «coxinhas» (nome dado à burguesia) desfilam – com as bábás a reboque para lhes tomar conta dos filhos ou levar a lancheira – aos gritos de «golpe militar», mandaria o bom senso, no mínimo, evitar situações de tão evidente paralelismo.

Prudentes foram o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o líder do PSD, Passos Coelho, que mal deram com o gato escondido com o rabo de fora deste dito evento «puramente académico» e «sem dimensão política» logo foram tirando o cavalinho da chuva no respeitante à sua participação, invocando as sempre oportunas dificuldades de agenda.

Após quatro derrotas eleitorais sucessivas (2002, 2008, 2010 e 2014), a direita brasileira procura alcançar através do golpe o que não conseguiu com o voto popular. O que está em causa não são os problemas – e muitos são – que Brasil enfrenta. O que está em causa é um projecto neoliberal que não olha a meios para atingir os seus fins. Que alguns portugueses se prestem ao jogo sujo dos golpistas é no mínimo lamentável.

 



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