Cessar-fogo?
É grande a tentação de recorrer à violência
Seria bom se o acordo de cessar-fogo na Síria, assinado no dia 22 de Fevereiro pela Rússia e EUA, e que já teve o aval do governo sírio e do Conselho de Segurança da ONU, representasse o fim da mortífera guerra que há mais de quatro anos destrói aquele país laico do Médio Oriente. Mas essas esperanças não assentam sobre bases sólidas.
Logo no dia seguinte à assinatura do acordo, o Wall Street Journal citou «um alto funcionário governamental» para afirmar que o ministro da Defesa Ashton Carter, o Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas, General Joseph Dunford, e o director da CIA John Brennan formaram uma «aliança emergente de falcões face à Rússia, que evidencia discórdia no seio dos altos funcionários militares e diplomáticos» e defende uma escalada militar contra o governo sírio e a Rússia. Segundo o jornal, esses altos dirigentes dos EUA exigem medidas para «fazer os russos sofrer a sério» e dá como exemplo «o fornecimento de armas terra-ar que permitam aos combatentes oposicionistas travar o poder aéreo russo, com sistemas que representem uma mudança de fundo no curso dos acontecimentos». Tradução: capazes de abater aviões russos. Dois dias mais tarde, os EUA procediam «ao segundo lançamento dum míssil balístico inter-continental no espaço duma semana». Para que não ficassem dúvidas, o vice-ministro da Defesa Robert Work afirmou que os ensaios «enviam uma mensagem de que Washington tem um arsenal nuclear eficaz, aos rivais estratégicos como a Rússia, a China e a Coreia do Norte. 'É precisamente para isso que o fazemos', afirmou» (Reuters, 26.2.16).
O anúncio do cessar-fogo resulta da dramática situação em que se vieram a encontrar os bandos terroristas que combatem a guerra de agressão imperialista contra o povo sírio, fruto da colaboração militar do governo sírio com os seus aliados russos, iranianos e do Hezbollah. Terroristas a soldo dos EUA, como os próprios admitiam em tempos que pareciam mais prometedores: «Num escritório secreto próximo da fronteira síria aqui [na Turquia], agentes secretos dos Estados Unidos e seus aliados […] pagam salários mensais de pelo menos $100 a cerca de 10 000 combatentes no Norte da Síria» (New York Times, 18.9.14). Terroristas que incluem o ISIL e a Frente al-Nusra, a quem o economista norte-americano Michael Hudson chama uma «Legião Estrangeira Americana, que é enviada para qualquer país que se pretende destruir e conquistar» (entrevista publicada em www.nakedcapitalism.com, 17.2.16).
É certo que as discórdias cada vez mais públicas entre ramos diferentes do governo dos EUA, ou entre este e alguns seus aliados (como Israel ou a Turquia) reflectem os fracassos e o enfraquecimento relativo da super-potência imperialista. Mas, para além dos arrufos, o cessar-fogo representa uma possibilidade de aliviar a pressão sobre esses bandos e recuperar forças. É também natural que haja nestas notícias e declarações a vontade de fazer voz grossa num momento de recuo. Mas o belicismo imperialista tem causas objectivas e seria perigoso subestimar a criminalidade da classe dirigente dos EUA e do seu «Estado profundo». O capitalismo encontra-se numa crise sistémica, que vai conhecer novos episódios graves. A correlação de forças económica está em profunda mudança. Nos próprios EUA, a intensidade da crise social reflecte-se na explosão de episódios de violência, no aumento da toxicodependência e da taxa de mortalidade, na diminuição da esperança de vida para os mais pobres (The Atlantic, 4.11.15; New York Times, 16.1.16) e também, embora de formas perversas, na própria campanha eleitoral presidencial. Incapaz de responder à sua crise, é grande a tentação de recorrer à violência sem freios. Também por isso, o último orçamento militar, proposto no mês passado pelo Prémio Nobel da Paz Obama, prevê um aumento de 1,8 mil milhões de dólares nas despesas com armas nucleares (Reuters, 26.2.16).