Imaginem... a Paz

Manuel Pires da Rocha

«Nesta última canção gostava de pedir a vossa ajuda. Será que as pessoas dos lugares baratos podem bater as palmas? Os restantes podem chocalhar as jóias». John Lennon precisou de poucas palavras para caracterizar o público que, a 4 de Novembro de 1963, compareceu no concerto organizado pela Coroa britânica no Prince of Wales Theatre. Os Beatles participavam, entre muitos outros artistas, num espectáculo organizado pela realeza britânica. Na verdade tinha prometido provocar os «restantes» – família real e adjacências – com palavras mais duras mas, ao que parece, os «nervos» da ocasião amaciaram-lhe o verbo sem que lhe tivessem tolhido o significado político da denúncia.

John Winston Lennon nasceu em Liverpool em 9 de Outubro de 1940, nos dias em que os aviões nazis bombardeavam a cidade. Aprendeu com a sua tia Mary – irmã da sua mãe Júlia, que dele se ocupou na infância – os primeiros acordes, primeiro em banjo e em ukelele (descendente do português cavaquinho) por serem pequenas as mãos, incapazes de pisar as cordas da guitarra Gallotone Champion que lhe estava guardada.

Muito se escreveu sobre os encontros e desencontros familiares dos primeiros anos de vida de John Lennon. Disso aqui não cuidaremos, mas assinale-se aquilo que, com 5 anos de idade, já lhe era convicção: «Quando eu tinha 5 anos, a minha mãe dizia-me que a felicidade era a chave da vida. Por isso, quando fui para a escola perguntaram-me o que é que eu queria ser quando crescesse. E eu escrevi “feliz”. Disseram-me que eu não tinha entendido a pergunta, e eu disse-lhes serem eles quem não entendia a vida». Ainda criança, entre 1952 a 1957, estudou na Quarry Bank Grammar School, em Liverpool, período em que desenvolve o seu gosto pelo desenho. Foi aí que fundou, em 1956, uma banda de skiffle (um tipo de música folk com influência de jazz, blues e country, muito popular na Inglaterra na década de 1950) chamada The Quarrymen.

Viriam a seguir os Beatles (1960-1970), o grupo que é justamente considerado o lugar de crescimento artístico de John Lennon, para o qual escreveu algumas das mais celebradas melodias, dos mais cantados textos da música popular. É ainda nos Beatles que John Lennon revela a sua tomada de partido pelas causas contrárias às dos «chocalhadores de jóias»; ao lado dos que, batendo palmas nos seus concertos, são a «working class» que o poeta há-de homenagear com «Working Class Hero» (1970): «Logo que tu nasces, fazem-te sentir pequeno | Não te vão dar nada, nem tempo sequer | Até que a dor seja tão grande que não sintas mais nada | Um herói da classe trabalhadora é algo para ser».

Lennon iria justificar plenamente os cuidados do programa clandestino e ilegal do FBI COINTELPRO (Counter Intelligence Program), criado por J. Edgar Hoover e implantado e executado entre os anos de 1956 até após 1971 com a missão de neutralizar todas as actividades que fossem consideradas ameaça à segurança nacional norte-americana.

De trás vinha já a canção “Give Peace a Chance” (1969) contra a Guerra do Vietname, que revela um Lennon activista pela paz. Tão «perigoso» quanto a Paz pode ser para os (já então) planos das administrações presidenciais dos EUA. Quando John Lennon e Yoko Ono fixam residência em Nova Iorque, em Agosto de 1971, aproximam-se de activistas anti-guerra como Jerry Rubin e Abbie Hoffman, entre outros, e projectam a realização de um concerto nacional para o período da eleição presidencial de 1972. O concerto não chega a realizar-se, mas John Lennon envolve-se na oposição a Richard Nixon, como em 1971, quando participa no concerto Free John Sinclair em Ann Arbor,em homenagem a um activista anti-guerra preso sob a acusação de consumo de estupefacientes. John Lennon e Yoko Ono acompanham no acto de protesto Stevie Wonder, e os activistas Jerry Rubin e Bobby Seale dos Panteras Negras.

A Paz – assim mesmo, com maiúscula – foi um tema principal do compositor John Lennon, afinal nada mais do que uma variação da convicção expressa aos 5 anos, de ser a felicidade a chave da vida dos humanos. «Imagine» é produto dessa vontade, gravada entre a Inglaterra e Nova Iorque. E viria a transformar-se numa das 100 músicas mais interpretadas do século XX.

Lennon atribuía a aceitação generalizada da canção, que considerava «anti-convencional e anti-capitalista», ao facto de ser «adocicada». Para Lennon, «Imagine» era «Working Class Hero», mas com açúcar.

Pode John Lennon ficar descansado. As suas canções espalham a doçura que todas as lutas têm de ter quando são feitas em nome da Paz. E têm a firmeza bastante para assustar – tantas as vozes que se juntam – uma máquina imperial e belicista que teme, e tem razão para temer, palavras como «Imagine» e «Give Peace a Chance». Diz um dos poemas das Heróicas musicadas por Lopes-Graça que «até mortos vão ao nosso lado». Pois que John Lennon ocupe, junto dos seus, o lugar que lhe pertence – estes que marcham pela Paz, cantando, estão também determinados em que «ser feliz» seja um programa para a Vida.

 



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