Expulsar os gabirús
A palavra, «gabirús», reencontrámo-la na TV pela voz do jornalista e escritor Fernando Dacosta que, escusado será recordá-lo, em matéria de língua portuguesa e de adequação das palavras ao contexto em que se inserem tem uma autoridade muito acima do comum. Foi na TVI24 e falava-se do actual momento político, da imperiosa necessidade de mudança em mais que legítima defesa dos interesses do País, isto é, do povo português, e foi então que Dacosta lembrou em breve síntese o que é imperioso fazer: «-Correr com os gabirús que nos governam!», disse ele. Quem, ouvindo-o e estranhando a palavra pouco usual, fosse aos adequados livros apurar ao certo o seu significado, encontraria respostas variadas como que à escolha, sendo contudo certo que nunca a designação de «gabirús» corresponde a uma qualificação eticamente positiva, a um louvor, a um aplauso. Na verdade, está completamente fora de questão que um dia destes possamos ouvir o dr. Passos, o dr. Portas, ou mesmo qualquer outro dos doutores que têm vindo a mandar neste nosso país, afirmar na TV ou fora dela, em tom de imodesto autoelogio, qualquer coisa como «-Eu sou um gabirú!». Ou, em alternativa, referir-se a um qualquer seu colega de mando afirmando: «-O doutor Fulano é um grandessíssimo gabirú!».
O sinistro rol
Porém, para lá da palavra usada por Fernando Dacosta e do desapreço que manifestamente ela implica, sublinhe-se a necessidade imperiosa para que aponta a frase: o dever patriótico (e de esquerda!, acrescente-se já agora, para reiterar aqui uma fórmula sintética que tem vindo a ser muito utilizada) de impedir o acesso à governação de todos os que têm no seu currículo, que bem se pode designar por cadastro com a conotação negativa que a palavra tem, os responsáveis pela multiforme desgraça que desde há 39 anos tem vindo a assolar o País. Não está feito, nem provavelmente alguma vez se fará, o arrolamento ainda que sumário de todos os crimes sociopolíticos cometidos ao longo de já vários anos: quantos portugueses lançados na angústia do desemprego sem fim à vista, quantas famílias expulsas das suas casas por impossibilidade de continuarem a pagá-las, quantos pais e avós despojados de filhos e netos que se viram compelidos a optarem pela aventura amarga da emigração, quantos velhos doentes encaminhados talvez para uma morte mais breve ou para um acréscimo de sofrimentos físicos por não poderem adquirir os medicamentos que seriam o seu alívio ou talvez a sua cura, quantos jovens impedidos de continuarem a estudar. E, na alínea mais negra e clandestina desse sinistro rol, quantos suicídios cometidos por cidadãos portugueses em desespero, esgotada a última réstia de esperança. Em verdade, a governação de «gabirús», para utilizar ainda mais uma vez a palavra escolhida por Dacosta, tem na longa lista das suas culpas a responsabilidade por homicídios indirectos de cidadãos que não sobreviveram ao quotidiano tormento de um horizonte fechado, quando não apenas aos insuficientes ou tardios cuidados a que tinham direito no âmbito de um Serviço Nacional de Saúde de eficácia diminuída, torpedeado em proveito de interesses privados. Em verdade, dessa acção decorre serem eles moralmente réus de não quantificados mas indubitáveis casos de «morte de homem», como em tempos se dizia.