Quem finge que não vê?
Uma das canções mais emblemáticas de Bob Dylan, dos seus bons tempos de contestação, dizia, às tantas: «quantas vezes têm de voar as balas dos canhões até serem banidas para sempre?». E acrescentava: «quantas mortes terá (um homem) de conhecer até perceber que já houve demasiadas mortes?». A canção – «Blowing in the Wind» (Soprando no Vento) – marcou uma época, como bandeira de alerta contra a guerra, contra a prepotência, contra aqueles que, não querendo ver, são os piores dos cegos.
«Blowing in the Wind» tem andado a regressar à minha memória com uma assiduidade notável. E isto por causa desse grande drama actual que são os refugiados (não os migrantes, como se ouve demasiadas vezes, assim como quem quer, logo no designativo, minorar a enormidade do flagelo que afecta a vida de quem foge das guerras que fustigam as suas terras).
Ouve-se referências a este enorme drama em várias nuances e em diferentes tons. Há os que têm muita pena dos «pobres coitados», e logo na terminologia se desmascaram, porque ter pena é uma atitude passiva que, a manter-se, fará com que os refugiados continuem a ser «pobres» e «coitados»; outros há que, como o governo fascistóide da Hungria, despreza os que fogem dos seus lugares de calamidade e ergue, esses sim, verdadeiros muros da vergonha, com arame farpado de modo a que os fugitivos nem pensem que na Hungria há caminho de passagem, quanto mais lugar de acolhimento; e há os que acolhem essas pessoas por humanitarismo (não confundir com os que esfregam as mãos de contentes por lhes chegar, de mão beijada, uma inesperada e apetecível mão-de-obra barata...). Em Portugal há de tudo, câmaras a abrir as suas portas, gente de bem a manifestar a sua solidariedade activa e, também, cartazes «mimosos» de gente inqualificável, que apregoam «refugiados aqui, NÃO!», acrescentando que a prioridade é resolver o problema dos portugueses sem conseguir explicar como, porque, evidentemente, não sabem, ou sabem como resolver os problemas (?) de alguns portugueses de elite e que se lixe o mexilhão...
Porém, e sabendo que terá de se dar prioridade ao problema imediato desses muitíssimos milhares de pessoas, o que me apoquenta é que o que mais ouço e leio me faz lembrar a aspirina, que nos livra, momentaneamente, da dor de cabeça mas não vai ao cerne da questão de debelar o mal pela raiz, assim deixando que a causa profunda da dor permaneça, letárgica, mas sempre pronta a atacar de novo.
Os refugiados fogem da guerra, ou das guerras. Porém, não consta que o auto proclamado estado islâmico (a letra minúscula é propositada e não um erro ortográfico), para citar um exemplo flagrante, tenha uma indústria de armamento por aí além, parecendo-me até que não tem nenhuma, salvo erro. Porém, para além das marteladas hercúleas com que os membros do EIIL ou do EIIS, duas siglas para colocar geograficamente o dito «estado» no Levante ou na Síria, destroem monumentos históricos «hereges» (aqui é caso para dizer valham-nos os deuses...), não se vislumbra capacidade logística nem fabricante sua, deles, para prover armas e bagagens – leia-se balas, munições – aos seus «heróicos» combatentes a quem mais valeria a pena chamar alienados, transtornados, cegos, ignorantes, assassinos e por aí fora.
E por aqui se chega ao capítulo da hipocrisia, da desumanidade, da total ausência de escrúpulos. Porque as fábricas do armamento que é fornecido aos fazedores dessas guerras estão localizadas, têm sua sede em países da chamada civilização ocidental, ou seja, partem de países que se dizem defensores da democracia e do progresso as ferramentas de destruição que estão a criar esta onda de refugiados, afinal de contas vítimas da loucura de quem se serve da religião (?) para a contradizer, matando, pilhando, destruindo, e dos outros, os que enriquecem e não pouco alimentando os maníacos do EI que, por seu lado, defendem a sua fé mas é o tanas, como muito bem se sabe, basta perguntar a qualquer muçulmano que frequente a mesquita de Lisboa.
Volto à cantiga do início desta crónica, que pergunta: «quantas vezes pode um homem olhar à sua volta fingindo que não vê?»