O bom coração do senhor PM
Nem sempre a televisão nos traz notícias más, alarmantes ou simplesmente patetas: por vezes, embora talvez só de longe em longe, traz-nos boas notícias ou, no mínimo, notícias que nos lisonjeiam o ego colectivo, o que já não é mau. Foi o caso quando, um destes dias, nos fez saber que o Papa Francisco declarou nunca ter conhecido um português mau. É claro que a afirmação deve ser avaliada no seu contexto, como dizem na TV e fora dela as pessoas que estudaram para inteligentes: Francisco nunca passou por cá antes de 74, nos tempos da PIDE, nem na África então dita portuguesa quando da guerra colonial com os Wiriamu e similares que então desgraçadamente aconteceram. Mas parece certo que hoje não há portugueses maus, e a mais recente prova disso vimo-la também na TV, essa inesgotável fonte de reconfortos, quando o senhor primeiro-ministro dialogou em Braga com uma chusma de recalcitrantes que o rodeavam. Eram alguns dos chamados «espoliados do BES», gente que se obstina em não se conformar com o facto arrasante de as suas economias de uma inteira vida de trabalho duro terem sido trocadas por uns papéis sem valor, versão actualizada e tecnocratizada do velho «conto do vigário» de tão antiga tradição portuguesa. Perante o seu vozear, e para mais sentindo-se fisicamente apertado pelos circunstantes, o que poderia indiciar a iminência de alguma falta de respeito, o senhor primeiro-ministro deu sinais exteriores de compadecida compreensão e dos seus excelentes sentimentos. É não apenas caso para registo mas também para que se assinale alguma mutação ocorrida ao longo dos últimos anos nos sentimentos do senhor primeiro-ministro perante os seus compatriotas que sofrem. Como bem nos lembramos, não há muito tempo chamava-lhes piegas, o que aliás não caiu bem em quantos o ouviram, embora decerto tenha tido a compreensão ainda que silenciosa da generalidade pêèssedaica. Agora, como telepresenciámos, a angústia alheia despertou-lhe a corda oculta da solidariedade. E, dando testemunho desse fenómeno, falou.
O que lhes resta
Chegados aqui, resta recordar o que disse o senhor primeiro-ministro. E também o que não disse. Não disse que o governo a que preside iria, com urgência, debitar ao chamado Novo Banco, metamorfose do velho BES para tendencial confusão dos menos cautos, o valor das economias roubadas, creditando-as imediatamente nas contas dos espoliados em instituições de crédito por eles escolhidas, eventual e provavelmente fora deste país. Isso não disse, dizendo em troca que não pode dar remedeio à pilhagem por o caso estar nas mãos da Justiça, como se esta pudesse opor-se a que, precisamente, seja feita pronta e adequada justiça. Mas, porque o senhor PM tem um coração de ouro, disse mais: disse que estava disposto a dois actos de generosidade evidente: a dar, não do seu bolso mas da sua mão, uma assinatura que encimasse um documento colectivo, e, mais que isso, a desembolsar algum óbolo para uma subscrição destinada a custear as despesas judiciais e afins a que uma longa batalha no campo da Justiça irá certamente obrigar. Os exigentes dirão que este duplo sinal de bons sentimentos não foi nada de grandioso, mas esta eventual objecção não terá em conta que o importante em situações destas é a evidência de um excelente coração. Resta à generalidade dos portugueses o reconforto de terem presenciado pela TV um tão bonito acto por parte de quem tem no seu cadastro, com perdão da palavra, muitas dezenas de actos feios. E aos espoliados do BES, quase todos com idades acima do meio século, resta, se tanto ainda puderem, recomeçar a amealhar economias durante os próximos anos, provavelmente décadas, enquanto o seu caso se arrasta na sempre lenta Justiça portuguesa. E, é claro, o inevitável fim individual se aproxima.