UE: o vazio da palavra
Nas últimas semanas, têm sido propalados até à exaustão os conceitos que procuram recentrar este projecto de integração capitalista que é a União Europeia, como o projecto da Europa dos valores, construída com um pano de fundo de «valores indivisíveis e universais» comuns para um futuro de paz que os «povos da Europa» «decidiram partilhar». Assim começa, no seu preâmbulo, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, firmada em Nice em Dezembro de 2000. Curiosa esta afirmação quando poucos foram os povos da Europa que de facto decidiram e expressaram através do voto a conclusão do processo de adesão e integração na União Europeia, com todas as consequências que daí decorrem, configurando uma quase total perda de soberania dos estados e dos povos.
Invocados e repetidos até que se gastem, em cada momento que a direita e a social-democracia se posicionem sobre o que seja, os valores vertidos naquele documento, da paz, da dignidade do ser humano, da liberdade, da igualdade, da solidariedade, da democracia, do estado de direito, da segurança, da justiça, são a antecâmara que se vende como imagem e em nome da qual esta UE é glorificada.
O papel aguenta tudo, sabemos bem, e a prática da UE está bem distante da implementação e defesa destes valores. A maioria que compõe o Parlamento Europeu está perfeitamente alinhada nesta postura, nos documentos que produz, discute e aprova nas suas sessões plenárias. Na última, foram discutidos e votados alguns relatórios sobre significativas matérias e políticas desta UE, estruturalmente interligados e de que daremos breve nota.
Fundo Europeu para a Democracia – onde se procurou, até à exaustão, apresentar a UE como um paladino da democracia, do estado de direito e das liberdades, que, por via da sua política externa e através deste fundo, pretende proceder à «evangelização» dos países vizinhos ou, citando, «países em transição política e nas sociedades que lutam pela democratização». E de que forma? Através do financiamento directo de entidades (organizações sociais, políticas, jornalistas) que naqueles países apregoam os «valores» da democracia, claro está, desde que alinhados com os que melhor servem os interesses desta UE. Dos mecanismos de «democratização» sabemos bem o que pretendem e o despudor é tamanho que permite mesmo afirmações tão explícitas como a que transcrevemos: «Acolhe com agrado a concessão de subvenções pelo Fundo aos intervenientes ucranianos, o que constitui um bom exemplo do rápido apoio prestado a activistas políticos e da sociedade civil que, mais tarde, se tornam representantes democraticamente eleitos».
Política Europeia de Vizinhança – a direita e a social-democracia apelaram ao reforço financeiro e ao aprofundamento desta política, prosseguindo a sua natureza central, o expansionismo económico da UE, agravando os conflitos e tensões das suas fronteiras. Um instrumento que promove a militarização e abordagem securitária das fronteiras por via da Política Externa e de Segurança Comum e da Política de Segurança e de Defesa Comum, fomentando a submissão dos países vizinhos às políticas neoliberais da UE, visando a imposição de reformas políticas, sociais, económicas e culturais, e a criação de zonas de livre comércio. Uma política que procura legitimar a acção externa da UE que não reconhecemos, que ataca os direitos humanos ao mesmo tempo que hipocritamente os diz defender; que promove a postura discriminatória e elitista da sua política de migração, demitindo-se das suas responsabilidades no êxodo que hoje se testemunha, e nos milhares de mortos no Mediterrâneo que origina, reforçando instrumentos como o Frontex e a Europol. Uma política que hostiliza, nomeadamente a Rússia, tendo por base as políticas energéticas que estão em curso.
Segurança na região do Médio Oriente e do Norte de África – demitindo-se das responsabilidades da UE nas situações de conflito dos países afectados, legitima e prossegue a política de desestabilização, ingerência e agressão das regiões do Médio Oriente e do Norte de África. Prossegue a linha da chamada «democratização» dos países afectados, que se traduz, na prática, na formação e apoio de regimes autoritários que prosseguem a política imperialista dos EUA, da NATO e da UE. Todo um pacote de considerandos e propostas que procuram legitimar o caminho da militarização, da agressão belicista, da securitização das relações com aqueles países, espezinhando a legítima vontade dos povos e o seu direito inalienável à soberania. Mais um texto que apoia o conceito de Europa-fortaleza, procurando reforçar mecanismos como o Frontex, um dos pilares centrais da securitária, criminalizadora, exploradora e elitista política de imigração da UE.
O que têm em comum estes, como tantos outros, documentos aprovados pela maioria da direita e da social-democracia no PE? Sob a albarda dos valores fundamentais de que, dizem, está imbuída a UE e que procuram a todo o custo «defender» e implementar, não poderia ser mais clara a forma assumida como se implementam as políticas colonialistas da UE. Sob a paz – militarização e agressão. Sob a solidariedade – abandono e exílio. Sob a democracia – ingerência e manipulação. Sob a liberdade – perda de soberania e austeridade.
Mas não só. Todos estes documentos contaram com o voto favorável dos deputados ao PE de PS, PSD e CDS. Também nestas decisões, tal como nas questões essenciais, os eleitos de PS e PSD/CDS se alinham perfeitamente, partilhando a responsabilidade de, com os seus pares, manterem esta UE num rumo contrário aos interesses dos povos.
Quanto à palavra, essa é um instrumento que nesta UE e aos seus actores serve apenas para mascarar a prática. Palavras cheias de significado mas ocas de conteúdo, que para alguns são apenas bolinhas de sabão...