Sem préstimo

Anabela Fino

Quando se pensa que já não há nada que este Governo possa fazer susceptível de nos surpreender, zás, lá vem uma nova investida a demonstrar que a voracidade dos abutres não conhece limites. Depois da sua passagem pelo Japão, onde qual negreiro dos novos tempos foi angariar compradores para o saldo de empresas nacionais, publicitar os baixos salários e a precariedade, e vangloriar-se da «grande resiliência» política e social do País, Passos Coelho voltou à carga, desta feita numa conferência sobre investimento, em Lisboa, onde afirmou o empenho do Executivo em «baixar o custo do trabalho» para as empresas.

Com o desplante que o caracteriza e aquela capacidade de dizer as maiores enormidades como se de coisa séria se tratasse, o primeiro-ministro traçou um quadro idílico de uma economia a desabrochar com a exuberância das giestas e urzes na Primavera. Só falta, na sua opinião, que o País seja «mais atractivo» para os investidores: nos impostos sobre lucros, naturalmente, mas sobretudo quanto aos custos do trabalho. Passo foi mesmo ao ponto de dizer, com mágoa, que [baixar o custo do trabalho para as empresas] «foi a reforma que não conseguimos completar».

Ou seja, os quatro anos de destruição das funções sociais do Estado, de cortes de salários e pensões, de liquidação da contratação colectiva, de imposição da precariedade, de empobrecimento generalizado da população, ainda não bastam. Numa altura em que o INE acaba de informar que as taxas de poupança e de capacidade de financiamento das famílias diminuíram para 6,9 por cento do rendimento disponível e 2,5 por cento do PIB, respectivamente, só entre o terceiro e o quarto trimestres de 2014, devido à diminuição dos rendimentos (menos 0,8 por cento) e «remunerações e dos benefícios sociais recebidos»; e quando o Eurostat anuncia que Portugal registou a segunda maior quebra do custo horário da mão-de-obra de 2013 para 2014, tendo descido de 13,2 euros para 13,1 euros, enquanto esse custo aumentou 1,4 por cento na União Europeia, para os 24,6 euros, e 1,1 por cento na Zona Euro, para 29,2 euros, justamente nesta altura, dizíamos, o primeiro-ministro vem dizer que é preciso persistir e aprofundar a degradação das condições de vida dos portugueses.

A «reforma» que Passos quer fazer é a redução da Taxa Social Única (TSU) para as empresas, que ficou pelo caminho quando não houve «resilência» que chegasse para pôr os trabalhadores a arcar com os custos.

Diz quem sabe que desta vez a redução não será compensada com o aumento da contribuição dos trabalhadores. Os patrões aplaudem, naturalmente, e da tão badalada «sustentabilidade» da Segurança Social, invocada pelo Governo para os bárbaros cortes feitos nos apoios sociais, não se fala. A factura, essa, tem destinatário conhecido: os pagantes do costume. Mas lá diz o ditado: «tantas vezes vai o cântaro à fonte, que um dia lá deixa a asa»... Como o barro desta gente nem para cântaro serve, é de crer que nem a alma se lhes aproveite.

 



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