A Primavera no Quebeque
Longe vão os tempos em se dizia que o Canadá é a «Noruega das Américas», o arquétipo do paraíso social-democrata na Terra, um país capaz de encaixotar um Estado social forte no mercado livre e, ainda assim, ostentar níveis de desenvolvimento económico capazes de rivalizar com o poderoso vizinho do sul. Mas ou algo vai mal na monarquia canadiana de Elizabete II, ou nesse «paraíso» só entram capitalistas.
Em apenas trinta anos, as desigualdades sociais duplicaram: os 1% mais ricos, que na década de oitenta controlavam 8% de toda a riqueza do Canadá, são agora senhores de 15%. Enquanto o crescimento da riqueza dos canadianos mais ricos manteve taxas de quase 30% ao longo das últimas três décadas, os salários ajustados à inflação aumentaram apenas 0,1%. Por outro lado, o governo do Canadá tem cortado consistentemente a carga fiscal sobre os mais ricos, ao mesmo tempo que compensa estes benefícios fiscais com políticas de austeridade para os trabalhadores.
Greve de estudantes,
luta de classes
Na província do Quebeque, a política de austeridade do Partido Liberal tem incidido com especial violência no direito à educação. As propinas do ensino superior, que apenas desde 2007 aumentaram 108%, podem agora voltar a subir: assim agoiram os cortes contemplados no orçamento provincial apresentado no passado dia 27 de Março.
Desde o princípio do mês que as ruas do Quebeque vibram sob os pés dos estudantes em luta contra a austeridade. Esta segunda-feira, 62 000 estudantes votaram a favor do início de uma greve sem prazos, com cerca de 40 000 estudantes em greve permanente. Ao longo das próximas duas semanas, outros 145 000 estudantes deverão também votar a greve. À medida que a luta convocada pela ASSÉ (Associação de Solidariedade de Sindicatos e Estudantes) se alastra a toda a Província e começa a transbordar para as regiões contíguas, o governo liderado por Philippe Couillard radicaliza a repressão policial e as ameaças. Na terça-feira passada, uma manifestação de milhares estudantes na Cidade do Quebeque foi declarada ilegal: 247 estudantes foram detidos e uma jovem ficou ferida com gravidade após ser atingida no rosto por uma lata de gás lacrimogénio.
Rumo à maior greve
da História do Canadá?
Em 2012, a luta que derrotou os cortes propostos pelo anterior governo levou 300 000 estudantes (de um total de cerca de 400 000) a uma greve de duração indefinida que envolveu manifestações de centenas de milhares de alunos, a maior greve de sempre no Canadá. A província do Quebeque é historicamente a região canadiana com maior capacidade de mobilização sindical e estudantil. Não estranhamente, a população da região franco-falante é também uma das que preserva mais direitos e a que conserva mais defesas contra a austeridade. A propina anual no ensino superior, por exemplo, custa 7000$ em Ontário e 2750 no Quebeque. No entanto, a vaga de austeridade que assola o Quebeque e o Canadá não é apenas um problema dos estudantes: é sobretudo uma agressão contra a classe operária e contra os trabalhadores.
Com estas preocupações em mente, sindicatos e associações de estudantes discutem neste momento a possibilidade de avançar para uma greve geral de trabalhadores e estudantes no 1.º de Maio. A cumprir-se a promessa, esta poderia vir a ser uma das maiores greves da História do Canadá. Mas os obstáculos são muitos e não são apenas externos: não só a ASSÉ está minada de profundas contradições como os próprios movimentos sindicais canadiano e quebequense continuam reféns do sindicalismo liquidacionista, que insiste em apostar sucessivamente num dos dois partidos guardiões da social-democracia moribunda: o Novo Partido Democrata e o Partido Quebequense.
Independentemente do que suceder no 1.º de Maio, os acontecimentos no Quebeque provam duas coisas: que está esgotada a capacidade de bem-estar social do «aprazível capitalismo» social-democrata, e, por outro lado, que as suas próprias contradições forçam inevitavelmente a luta de classes a romper, até sob a mais bruta crosta que a soterra.