A orientação pelo silêncio
Como se sabe e até talvez aqui tenha sido por várias vezes sublinhado, isto de sermos espectadores da televisão que nos é fornecida sem que sejamos não só consumidores passivos de quanto ela decida impingir-nos, mas também cúmplices tácitos das escolhas e exclusões por ela decididas, implica prevenções, cautelas e até alguma sabedoria. Entre estas, inclui-se o confronto entre o que a TV nos vai deixando saber e aquilo que ela omite e contudo vamos conseguindo saber por outras vias, nem sempre muito facilmente acessíveis mas existentes. E o método, com perdão da palavra que é manifestamente excessiva, pode conduzir-nos a resultados nunca inteiramente satisfatórios, é certo, mas ainda assim compensadores: evita, em boa parte dos casos, que resvalemos para a situação pouco lisonjeira de nos situarmos entre os que aceitam o que a TV nos induz a crer como se as suas mensagens explícitas ou implícitas fossem de uma veracidade assegurada, de uma espécie de infabilidade papal mas neste caso muitíssimo laica. É certo que por vezes a inverdade do que nos é contado ou apenas insinuado é de tal modo flagrante que ninguém nela crê: é o caso da nossa colectiva «saída da crise» ou da mítica «redução do desemprego», espécie de fábulas aparentemente coevas do tempo em que os animais falavam. Mas, tal como «entre mortos e feridos sempre alguém há-de escapar», como diz a suposta sabedoria popular, acontece que entre cépticos e incréus sempre haverá alguém que acredite ou, no mínimo, se deixe contagiar pelo vírus da impostura inoculado por acção ou omissão, pela palavra ou pela ausência dela. Pelo que talvez valha a pena tentar uma espécie de método que nos ajude a orientarmo-nos pelo menos um pouco numa tentativa que manifestamente é de legítima defesa.
As omissões fundamentais
É nestas circunstâncias que pode surgir o que permitirá talvez a designação de «orientação pelo silêncio» e que consiste, grosso modo, em identificar as questões importantes e reveladoras que permanecem ausentes ou só muito longinquamente estão presentes no permanente fluxo informativo que a televisão nos injecta. Se minimamente acedermos a outras fontes de informação, o que é fácil neste nosso tempo de prodígios técnicos, não será difícil identificarmos uma ou outra questão-chave de que a TV, e em verdade não apenas ela, se mostra avara. E para que não se diga que aqui se formulam hipóteses abstractas, passemos a um caso concreto. Do suposto «estado islâmico», espécie de monstro sem limites fronteiriços nítidos e de rosto sempre oculto, vamos sabendo da existência e da barbárie a que se aplica. Mas sabemos pouco da cumplicidade que lhe garante o financiamento para as suas despesas colossais (pois a manutenção de uma guerra minimamente moderna implica custos gigantescos), pois não basta dizer que alguém lhe compra o petróleo que lhe caiu nas mãos, e menos ainda é falada a raiz do aparecimento do «estado islâmico», praticamente súbito e a partir do nada. Contudo, podemos ir sabendo por outras vias de alguns dados que a TV silencia e são relevantes. Podemos saber das vozes que identificam a CIA como mãezinha deste monstro, engendrado no decurso do trabalho pelo controlo USA do Médio Oriente petrolífero com escala pela destruição da Síria de Bashar-al-Assad depois da leviana destruição do sunismo de Saddam. Podemos saber da cumplicidade de monarquias corruptas, aliadas (ou de facto súbditas) dos Estados Unidos, com a extrema brutalidade do «EI». É certo que podemos sonhar com uma TV que se aplicasse a esgravatar estes caminhos informativos e assim nos abrisse portas para um entendimento efectivo do que se passa e é, bem se sabe, terrível e de primeiríssima importância. Podemos sonhar, mas em vão. Em troca, contudo, podemos usar essas omissões, esses silêncios, para nos orientarmos na identificação do que, sendo fundamental, nos é recusado. Na verdade, para começarmos aí o nosso encontro com o que é preciso conhecer. E recusarmos, vencendo-a, a estratégia informativa que funciona como forma «aggiornata» de censura.