Vivamos
A exemplo do que sucede com algumas canções, que sem razão aparente ou por um errático processo de associações de ideias nos martelam na cabeça durante horas e mesmo dias a fio, esta semana invadiu-me persistentemente a lembrança do poema de Reinaldo Ferreira – Receita para fazer um herói: Tome-se um homem, / Feito de nada, como nós, / E em tamanho natural. / Embeba-se-lhe a carne, / Lentamente, / Duma certeza aguda, irracional, / Intensa como o ódio ou como a fome. / Depois, perto do fim, / Agite-se um pendão / E toque-se um clarim. / Serve-se morto.
Mais intenso do que tudo o resto fica este «Serve-se morto», seja lá onde for, que de mortos esteve a semana cheia e de mortos se falou em todas as línguas. Mediatizados uns – a «nossa» dor dói sempre mais do que a dor dos «outros» –, ignorados a maioria deles, os mortos aí estão todos os dias a marcar o quotidiano, sem heroísmo que lhes valha mas sempre a clamar por justiça.
Mortos por uma bala perdida, mortos com um tiro à queima-roupa, mortos sem se saber porquê por um drone comandado a milhares de quilómetros de distância, mortos de fome e de frio, mortos sem assistência numa maca de hospital, mortos numa ambulância à procura da ajuda que fica demasiado longe e chega demasiado tarde.
Mortos também de desespero pelo trabalho roubado, pela casa pilhada, pela dignidade sonegada.
Mortos, enfim, no anonimato dos danos colaterais de todos os crimes que ficam por contar... e por punir.
É feita de mortos esta história do mundo globalizado pelo imperialismo, onde um punhado de hipócritas chora lágrimas de crocodilo pelos que tombam enquanto com as mãos sujas de sangue lavram novas sentenças de morte.
A encenação da pseudo manifestação de «dirigentes mundiais» nas ruas de Paris – chefes de Estado e de governo, incluindo Passos Coelho, naturalmente – que desfilaram durante alguns minutos e pousaram para a fotografia separados por um imponente dispositivo policial dos milhões de pessoas que saíram à rua em genuína manifestação de repúdio e indignação pelo bárbaro ataque ao Charlie Hebdo, tresanda a morte. Morte matada fruto das políticas que cada um por si e todos em conluio praticam no mundo globalizado do capital – fomentando guerras contra estados soberanos, instigando conflitos religiosos e étnicos, promovendo forças de extrema-direita, fascistas e xenófobas, prosseguindo políticas que incrementam a exclusão social e a exploração –, e morte anunciada de elementares direitos democráticos em nome da «segurança».
Num sistema que globaliza perdas e danos e privatiza lucros e benesses, até os mortos – acidentes de percurso – servem, quando servem, para legitimar o ilegítimo. Vítimas e carrascos, depois de mortos, tornam-se pratos pronto a servir para alimentar o monstro, insaciável nos estertores da morte a que historicamente está condenado.
Cabe-nos a nós – os que querem transformar o mundo – mudar o rumo desta história. Viver.