Tudo boa gente

Correia da Fonseca

Este título não tem nada de irónico, muito menos de sarcástico: todos os participantes no «Prós e Contras» da passada segunda-feira, quer os instalados no palco do auditório do Centro Champalimaud quer os que intervieram a partir da plateia, eram decerto excelentes pessoas, de óptima formação moral e acima de qualquer suspeita. É claro que o tema abordado permitiu essa evidência: tratava-se, segundo a legenda e o anúncio público, de falar de «Pobreza e Solidão», mas de solidão pouco ou nada afinal se falou, muito se tendo falado de solidariedade, pelo que parece legítimo suspeitar de que alguém se enganou pelo caminho tendo trocado «solidariedade» por «solidão», enganado pelo radical das palavras e frustrando porventura algumas expectativas. O caso é que a emissão quase se confinou à abordagem de vários exemplos concretos de solidariedade na sua forma mais recomendada e exemplificada pelos «media», que é a que praticamente se sinonimiza com a caridade cristã, uma das chamadas virtudes teologais que não se confina à dádiva da esmola e não é nada que se possa deitar fora em qualquer circunstância, muito menos na que o povo português hoje atravessa. Para mais, como ali ficou por mais de uma vez demonstrado, a solidariedade na sua forma mais vizinha da esmola proporciona importantes compensações a quem dela faz a sua forma de intervenção social. Um dos intervenientes, João Brito, revelou mesmo que a solidariedade «é sexy», o que aponta para a abertura de novas perspectivas, e Luísa Tavares Moreira referiu-se ao «imenso gozo» proporcionado pela sua prática.

De súbito, o limite

Não se pense, porém, que o programa se limitou a estes aspectos virtuosos mas limitados: nele foram feitas afirmações e denúncias que, embora não constituindo novidade para a generalidade dos telespectadores, foram confirmação de dados alarmantes e verdadeiramente escandalosos. Eugénio Fonseca, presidente da Caritas, depois de denunciar «a artimanha de baixar a linha de definição da pobreza» e «a produção de riqueza que não foi distribuída», confirmou que «há fome em Portugal, distribuída por todo o país» e, ao abordar o caso da hostilização ao RSI, denunciou que «o regime capitalista conseguiu uma proeza inaudita, colocar os pobres contra os pobres.» O psiquiatra dr. José Gameiro deu voz à nossa indignação quando disse que «é inacreditável dizer que Portugal vivia acima das suas possibilidades». Henrique Pinto preconizou «o paradigma da dignidade» em vez da «idolatria do dinheiro» e afirmou que «a pobreza é uma questão estrutural» embora naquele momento não se adiantasse mais por este caminho. Fê-lo Sérgio Aires ao dizer que «a pobreza não é uma fatalidade, é uma opção política e económica», e Henrique Pinto voltou a esse entendimento dizendo que «cabe ao Estado criar oportunidades». Foi então que Fátima Campos Ferreira, coitada, parecendo dar sinal de algum susto perante o encaminhamento que a conversa estava a tomar, resolveu intervir para evitar complicações: «-Já estamos a meter ideologia!», disse ela, num tom semelhante ao do antigo agente da polícia que mandava os cidadãos circular para evitar complicações. Como quem diria que já se estava a falar de política, talvez que se estava a um passo de se sentir ali a falta de uma voz que claramente denunciasse o capitalismo como produtor da pobreza aqui e por todo o mundo, de quem desmascarasse o governo como seu agente local. Era, de um modo quase escandaloso, o indício de que o debate é possível e simpático, muito democrático, mas que tem limites que não podem ser ultrapassados, e que ao jornalista de serviço compete velar para que não se resvale para terrenos inconvenientes e de facto interditos. Tudo menos ideologia, como quem diz «-Eu não me meto em política!». Talvez se possa adivinhar ou é possível entender («Em política, o que parece é», disse o velho mestre): um emprego é um emprego, tem chefias, patrões, uma pirâmide de poderes, a realidade é o que é. Ali, a realidade era um programa de televisão subitamente castrado. E não era coisa bonita de se ver.



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