Música e Paz

Tiago Santos

Amilcar Cabral, herói combatente da luta pela independência das ex-colónias africanas, fazia gosto em lembrar a urgência da luta armada contra o opressor através do ditado popular africano «quando a tua palhota arde, de nada serve tocar o tam-tam». Desta forma Amílcar Cabral chamava o povo à acção para a luta que se travava pela independência. Mas encontramos aqui uma genuína conjugação da dialética que se pode opor ao pacifista incauto, perdido no emaranhado semi-selvagem do elo de ligação entre John Lennon e José Mário Branco. Afinal, como entender o papel de «Imagine» para a luta pela paz mundial, se como nos diz o Zé Mário, «A cantiga é uma arma»?Esta é provavelmente a questão que se põe a todos aqueles que reconhecem na música um aliado para as lutas dos povos que visam «paralisar a mão armada do invasor», como Che Guevara de forma eloquente proclamou diante das Nações Unidas em 1964.

Nesse sentido, a definição de paz enunciada pela positiva como um estado de apaziguamento e tranquilidade, ou pela negativa como a ausência de guerra e de conflitos, pode dar-nos aqui uma preciosa ajuda para descortinar essa ligação. Na música, encontramos com facilidade a tormenta da revolta punk dos Peste & Sida ou a paz na esperança das vozes infantis da Oficina do Canto. Mas sabemos também que ambas partilham, para lá da forma individual da expressão de cada um, da arte da canção como um veículo para a sua vontade de construção de um futuro de paz. Então podemos afirmar que há mais do que notas, ritmo, harmonia no que os nossos sentidos compreendem quando ouvimos música. Mas por si só a compreensão das múltiplas dimensões da Música não nos diz muito sobre como podemos afinal pensar a cumplicidade intemporal da relação entre Música e Paz.

Também aqui, uma reflexão positiva leva-nos a associar directamente a criação musical com a própria Natureza, a vida que da semente germina e que de fruta se transforma em alimento e energia. Como a Natureza, o Planeta e o Cosmos, a música é vida, é criação que nasce e se afirma no mundo. E também como o Homem, porque é sua criação, ela é moldada pela realidade objectiva que a rodeia. Assim podemos traçar uma qualidade que une a Música e a própria Natureza. A Música é positivamente resultado da experiência vivida, transformação criadora do homem, obra que nasce para comunicar e que por isso vive enquanto se projecta nos outros e inspira novas reflexões.

Diálogo com o futuro

Por outro lado, de forma negativa a Guerra e as suas sementes de napalm e armas de destruição, são o terreno oposto ao da própria criação musical. Pela sua natureza antagónica, mas também pelo inevitável esmagamento das elementares condições de criação, inspiração e de fruição, a Guerra é o vírus que corrói o corpo artístico da humanidade. É a gangrena que ceifa vidas e espalha ruínas onde antes havia paz e canções. A rapina de países inteiros em nome dos interesses económicos de uma minoria de falcões que alicerçam na subjugação dos povos a riqueza dos seus impérios sedentos, apesar de matéria para a denúncia de compositores e músicos amantes da Paz, é o mal que destrói, cala e tortura as vozes de milhares de vidas.

É portanto do lado oposto que nos encontramos para viver e sentir a Música. É de um verdadeiro choque civilizacional e confronto que se trata, que não se pode iludir mesmo que haja alguns que procurem estetizar a Guerra e o Imperialismo. A esses, como Walter Benjamim disse, respondem os comunistas com a politização da Arte, com o desenferrujar das canções e da criatividade em nome da luta por uma sociedade mais justa e livre. Com a pontaria bem alinhada pelos anseios do seu povo, o músico desfere profundos golpes na muralha das consciências que ainda bloqueiam os mais elementares anseios das nações do mundo que sofrem o neocolonialismo. E em quantas lutas houver, pela paz, pela liberdade, pela autodeterminação dos povos, pela justiça e dignidade dos povos, também se erguerão hinos de combate, de amor, murmúrios ou lamentos de vozes que saram as feridas das vidas rompidas pelas guerras e pelas políticas de exploração.

Então de novo assalta a pergunta ao incauto pacifista, como pode a Música trazer-nos Paz se ela é uma arma? É da própria natureza da criação musical ecoar os desejos e sonhos por transformar dos seus povos. Através da música, poetas, cantores e compositores passam mensagens de ânimo e de revolta, mas também de formação. A Música e o seu papel transformador tem com a Paz interesses comuns. Pelo diálogo com a vida, o criador responde com a sua obra, por sua vez pela vida em Paz, o Homem dialoga com o futuro. E é essa conversa que temos de ter, com ou sem música de fundo, mas com a certeza que como Pete Seeger disse «É muito importante aprender a dialogar com quem não concordamos». Esse é o caminho e a Música pode muito bem ser ainda, nesta era de interfaces e de comunicação digital à distância, um dos melhores meios de comunicação do Mundo.



Mais artigos de: Argumentos

Tudo boa gente

Este título não tem nada de irónico, muito menos de sarcástico: todos os participantes no «Prós e Contras» da passada segunda-feira, quer os instalados no palco do auditório do Centro Champalimaud quer os que intervieram a partir da plateia, eram decerto excelentes...

MPME fazem falta ao País

Eu e minha mulher mantemos uma micro empresa em Alenquer na área do electrodoméstico, ar condicionado, prestação de serviços e manutenção, que conta hoje com 66 anos de actividade, onde já trabalharam 15 funcionários e que hoje não vão...