A verdade e a mentira do cinema
Maidan, o documentário que abriu a Doc Lisboa é filme exemplar dos processos de manipulação emotiva, com a enorme mistificação de se apresentar como uma recusa de interpretação dos acontecimentos que decorreram entre Dezembro de 2013 a Fevereiro de 2014, em Kiev.
Todo o filme é construído sobre a ideia pré-concebida pelo realizador, que escolhe as imagens, faz a montagem, organiza a banda sonora, para descaracterizar o que politicamente estava no terreno, construindo uma narrativa em que tudo aparece como natural, espontâneo, quase ingénuo. As imagens, a montagem, a banda sonora sublinham a solidariedade entre os manifestantes e o fundo patriótico do protesto.
As cenas das movimentações de massas, em clamor pacífico ou enfrentando a polícia, são intercaladas com planos de um canhão de água, do fumo dos gases lacrimogéneos, das chamas, dos confrontos físicos. Dramatização cuidada para passar a mensagem que era o povo ucraniano que, de forma aberta, fazia a revolução. Sergei Loznitsa tem a precaução de não filmar outras bandeiras e tarjas de propaganda que não sejam as bandeiras nacionais, as palavras de ordem contra a corrupção. Nem um símbolo nazi, nem os grupos armados dos pró-nazis. Nem uma imagem dessa gente que foi objecto de várias reportagens de jornalistas insuspeitos de qualquer conotação ou simpatia com a Rússia. Isso para Sergei Loznitsa são «produtos da propaganda estatal russa, que infelizmente é muitas vezes traduzida e disseminada pelos media ocidentais». Não deixa qualquer fissura de dúvida sobre o seu código ético. A única verdade é a dele que não é dele mas das centrais de propaganda ocidentais. Faz isso com a candura de quem mente descaradamente para tornar a mentira mais autêntica. Faz isso com talento cinematográfico, em Maidan.
Na entrevista ao I, que temos vindo a citar, foge às críticas que lhe fazem por dar uma imagem parcial, deformada, pouco abrangente dos acontecimentos em Kiev: «eu não sou jornalista nem uma agência de notícias, cujo trabalho é passar essa imagem abrangente. O que faço é cinema, que tem funções diferentes». Isso todos nós sabemos. No cinema há múltiplos exemplos de filmes que não se mascaram com a neutralidade ideológica «de estar acima das questões da política», que são abertamente de propaganda e são obras-primas. Aliás, ele próprio afirma que «tudo o que faço nos meus filmes é intencional. Não pode haver acidentes. Fi-lo porque quis dar aos espectadores a hipótese de experienciarem a atmosfera dos eventos e tirarem as suas próprias conclusões». Uma afirmação sem nenhuma seriedade intelectual. Em duas frases contradiz-se, desmente-se sem pudor. Ao ler o resto da entrevista a intencionalidade que diz existir no seu filme é transparente. Não é uma agência de notícias, nem é um jornalista, mas faz rufar alto e bom som os tambores da propaganda ocidental mais radical. Depois, filma em conformidade. Assistimos a uma admirável demonstração do que Georges Orwell disse: «para sermos corrompidos pelo totalitarismo, não temos de viver num país totalitário». Sergei Loznitsa, que se diz democrata, está corrompido pelo totalitarismo do pensamento único dominante.
No filme as massas, os manifestantes estão despolitizados. Lutam patrioticamente pela alteração do seu próprio destino. Contra a corrupção e o despotismo. Um idealismo em estado puro que todos sabemos, menos Sergei Loznitsa, ter sido suportado por um investimento de cinco mil «milhões de dólares» como Victoria “Que se Foda a Europa” Nuland disse com todas as letras.
Consegue os seus objectivos. O filme inicia-se com os manifestantes a cantar o hino nacional, a banda sonora é soberba, dando início a uma festiva movimentação de massas populares. Um vai e vem contínuo, manifestantes entram e saem de escolas, das tendas. Os voluntários distribuem comida e bebida. Médicos e enfermeiros cuidam dos feridos. Discursos e poemas são ditos por gente anónima, Loznitsa tem o cuidado de apagar os líderes. O súbito som de «Ciao Vitya Ciao», com a base na canção revolucionária italiana «Bella Ciao», é um momento cinematográfico quase exemplar, como é exemplar o plano da câmara estática a filmar a zona das conferências de imprensa, que de repente foge à nuvem de gás lacrimogéneo. Ou a marcha dos manifestantes para o parlamento, que se inicia com a visão longínqua de fumo negro, a enquadrar uma série de pequenos detalhes que dão uma sensação de urgência. Todo o filme é construído para nos transmitir as emoções daqueles meses, manipulando o enorme poder das imagens. Quase se acredita que Sergei Loznitsa quis reflectir sobre «a insurreição popular, enquanto fenómeno social, cultural e filosófico». Utiliza esse caldo de cultura para fazer um filme de propaganda de um suposto levantamento popular espontâneo. A UE, os EUA, os seus títeres ucranianos encontraram a sua Leni Riefensthal doblez, com muito menos talento, mas bastante saber cinematográfico.