Ar fresco

Anabela Fino

Por qualquer razão que a razão desconhece Passos Coelho decidiu comemorar o 25 de Abril convidando para almoçar, na residência oficial, um grupo de jovens dirigentes associativos. Os critérios que presidiram à escolha dos convivas não foi divulgado, mas a avaliar pelo resultado é de admitir que a identificação político-partidária e a garantia de que não haveria vozes discordantes tenha sido a bitola.

Se o repasto foi à porta fechada o mesmo não se pode dizer do aperitivo político servido no jardim do Palácio de São Bento sob o olhar atento dos media.

Quiçá inspirado pelo sol primaveril e pelo verde das plantas, o primeiro-ministro armou-se em jardineiro para transmitir a sua mensagem, cuja inclui a asserção de que «a democracia e a liberdade têm de ser regadas com muito cuidado todos os dias». Se a coisa tivesse ficado por aqui nada haveria a apontar, exceptuando naturalmente o facto de a frase nada ter de original para além de ser factualmente incorrecta, já que nem só de água vivem os jardins, mesmo os da democracia, que correm o risco de definhar por afogamento e míngua de substrato, para já não falar das ervas daninhas que tendem a proliferar se não as cortamos pela raiz. Mas adiante... Sucede no entanto que Passos Coelho não se ficou por aí, fazendo questão de sublinhar que o «espaço de liberdade e democracia» tem de se «reinventar a cada dia que passa, porque senão deixamos as nossas comemorações a cheirar a bafio».

Não sabemos se um almoço à porta fechada – ainda que à conta do erário – pode ser entendido como uma lufada de ar fresco, mas custa a imaginar que a escola pública, universal e gratuita possa alguma vez cheirar a bafio; que o Serviço Nacional de Saúde – através do qual o Estado deve assegurar o direito à saúde a todos os portugueses – possa alguma vez cheirar a bafio; que o direito a uma habitação condigna, ao trabalho com direitos, à alimentação, a velhice protegida, à cultura, ao lazer, à justiça, à paz, numa palavra à vida possa alguma vez num país que se afirma democrático ter sequer um vestígio que seja de cheiro a bafio. Porque bafio é algo que cheira mal, caso Passos Coelho não saiba. E as conquistas de Abril, os valores de Abril que a Constituição consagra e que estão enraizados bem fundo no coração do povo nunca poderão cheirar a bafio porque são em si mesmos a lufada de ar fresco que acabou com o fascismo, esse sim putrefacto de quase meio século de opressão, exploração e obscurantismo.

Passados 40 anos sobre o 25 de Abril, são as palavras do primeiro-ministro que tresandam a mofo, é a política do Governo e das troikas nacional e estrangeira (que vem tentando fechar todas as portas e janelas que Abril abriu) que fede a bafio, é a submissão aos ditames da União Europeia e dos interesses do capital que empesta o ar que respiramos.

Passos Coelho pode não ter visto o povo que saiu à rua no dia 25 e pode não querer ver o povo que amanhã estará na rua a celebrar o 1.º de Maio, mas não mudará o rumo da história. Cá fora respira-se o futuro de que ele não fará parte.

 



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