Os sinais do êxito

Correia da Fonseca

Foi du­rante uma das ma­ti­nais «re­vistas da im­prensa» que os ca­nais es­pe­ci­fi­ca­mente in­for­ma­tivos nos ofe­recem, e ainda bem, que eu pude rever Ri­beiro Car­doso, ex­ce­lente jor­na­lista e meu an­tigo com­pa­nheiro em «o diário» ao longo de já lon­gín­quos dias que não con­sigo es­quecer. Quando li­guei o te­le­visor já ele lá es­tava, no ecrã, a lem­brar umas ver­dades fun­da­men­tais acerca do dr. Vítor Gaspar, essa es­pécie de co­meta a um tempo fu­nesto e de­sas­trado que du­rante algum tempo se man­teve na cons­te­lação pê­pê­daica que tomou conta do País. A se­guir e também pela boca do Ri­beiro Car­doso soube do caso de uma do­ente on­co­ló­gica que, na­tu­ral­mente à beira do pâ­nico e do de­ses­pero por lhe estar a ser re­cu­sado o me­di­ca­mento que lhe é ne­ces­sário para de­fesa da vida, ame­açou en­trar em greve de fome di­ante do hos­pital que lho nega. A con­versa de Ri­beiro Car­doso com a jor­na­lista que o aco­lhera ficou por ali, a busca que fiz em dois jor­nais na es­pe­rança de mais in­for­mação sobre o caso não teve êxito, mas já fi­cara claro que aquela si­tu­ação dra­má­tica era mais uma con­sequência da cha­mada «aus­te­ri­dade» que há já bem mais de dois anos vem sendo dis­pa­rada contra a ge­ne­ra­li­dade dos por­tu­gueses, por vezes cris­mada com a de­sig­nação hi­pó­crita de «sa­cri­fí­cios» também muito ou­vida pelos te­les­pec­ta­dores quando um dos su­jeitos do Go­verno é ou­vido pela te­le­co­mu­ni­cação so­cial. Será ade­quado su­bli­nhar, de pas­sagem, que a pa­lavra «sa­cri­fí­cios» se jus­ti­fica ple­na­mente se uti­li­zada no ve­lhís­simo e sempre sel­vá­tico sen­tido de sa­cri­fí­cios hu­manos em ale­gada honra de um deus cru­de­lís­simo que su­pos­ta­mente os re­clama. Neste caso, o deus im­pla­cável, sem ver­gonha e sem ves­tí­gios de re­morsos, é o ca­pi­ta­lismo, como bem sabem os mi­lhões que o so­frem e de que o tandem Passos Co­elho/​Paulo Portas se tornou sumo-sa­cer­dote local.

O que se sabe

A do­ente a que Ri­beiro Car­doso se re­feriu está ob­vi­a­mente em risco de vida, em­bora seja ad­mis­sível que o alarme por ela de­sen­ca­deado possa salvá-la, mas é pre­ciso não es­quecer que são muitos mais os por­tu­gueses cuja so­bre­vi­vência está ame­a­çada quer di­rec­ta­mente por do­enças in­su­fi­ci­en­te­mente tra­tadas quer em con­sequência de lhes terem sido im­postos «sa­cri­fí­cios» na área ali­mentar ou outra que não apenas os privam de con­di­ções de vida sau­dável como também lhes re­tiram, muito sim­ples­mente, a von­tade de viver. Falo do «boom» de sui­cí­dios cujo nú­mero não é re­ve­lado talvez não só pelas ra­zões de­on­to­ló­gicas a que os media se sentem obri­gados, mas também das muitas e enormes amar­guras que de­correm da de­su­ma­ni­dade que ca­rac­te­riza muitas das me­didas go­ver­na­men­tais. Tudo isso, e de­certo muito mais, são os si­nais do «êxito» que anda a ser fu­ri­o­sa­mente pro­cla­mado pelo Go­verno quando fala da sua acção. Bem se sabe que, quando even­tu­al­mente con­fron­tados com o de­sa­ti­nado ex­cesso de me­didas res­tri­tivas le­gis­ladas e o dever de não atrai­çoar an­tigos con­tratos fir­mados com a parte mais frágil da po­pu­lação, o Exe­cu­tivo e seus cúm­plices in­vocam como ar­gu­mento final que «não há di­nheiro», um pouco como se res­ponde a um pe­dinte que nos roga uma es­mola. Mas também se sabe das rendas pagas a em­presas cujas re­ceitas exor­bi­tantes e eti­ca­mente in­su­por­tá­veis são pre­ser­vadas por con­tratos, esses sim, su­pos­ta­mente de­fen­didos por sa­gradas in­vi­a­bi­li­dades; dos lu­cros trans­fe­ridos para o es­tran­geiro para que não mo­tivem im­postos a pagar em Por­tugal; de for­tunas que se têm re­for­çado in­de­co­ro­sa­mente en­quanto cri­anças por­tu­guesas vivem na fome e os seus pais vivem no de­ses­pero. Sabe-se também da pro­moção pu­bli­ci­tária de que be­ne­ficia a prá­tica da ca­ri­dade, su­pos­ta­mente con­fir­ma­dora da vir­tude de quem dá, ave­ri­gua­da­mente hu­mi­lhante para quem re­cebe, apre­sen­tada como al­ter­na­tiva à ele­mentar jus­tiça so­cial. Sabe-se tudo isto e muito mais; só não se sabe, por en­quanto, como e quando a Jus­tiça e o pudor vão mandar no nosso País. Sabe-se con­tudo que esse tempo che­gará, só não se sa­bendo quando, como se diria pa­ra­fra­se­ando o que um dia disse o in­com­pa­rável Durão Bar­roso, agora talvez a aviar malas para um re­gresso que lhe seja pro­vei­toso. Ou, di­zendo-o de outra ma­neira, para ajudar ao saque.




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