Textos publicados e inéditos

Todo o teatro de Alves Redol

Domingos Lobo

Não advogo, naturalmente, uma cultura teatral do fechamento ou da pacóvia ignorância, xenófoba e redutora, face a dramaturgias oriundas de outros países, mas defendo, isso sim, um critério mais exigente, mais criterioso e informado dos produtos culturais, que não tenham como vectores apenas as questões económicas das companhias, ou as pressões exercidas pelos adidos culturais, ou por modismos de passagem, mas que possam, nas suas consignas, colocar-nos perante o novo, o diverso, e a exigente pesquisa que no campo teatral possam surgir em dramaturgias alheias e, por essa via, contribuir para o nosso enriquecimento cultural. E, claro, defendo como princípio um panorama em que a dramaturgia portuguesa contemporânea não seja, como hoje é, face à implantação cénica dos textos, residual e subalternizada. Aos teatros nacionais, sobretudo, deve ser exigida a função primordial de amostragem e encenação de textos da nossa dramaturgia, tanto os clássicos como os contemporâneos, visando, desse modo a preservação, em território tão esquivo, na particularidade das artes cénicas, de uma dramaturgia nacional.

As preocupações dos autores indígenas perante o desinteresse das nossas companhias e dos responsáveis pela cultura, na criação de uma dramaturgia nacional, não é fenómeno apenas dos dias rapaces que vivemos. Se nos reportarmos ao século XX, em que este divórcio, por motivos políticos, sobretudo, foi mais evidente – constrangimentos que foram impostos pela censura, sendo a peça Forja, de Redol, um dos alvos dessa sanha persecutória – verificamos que as diferenças não serão substantivas.

Em 1946, com a criação do Teatro-Estúdio do Salitre, de Luís Francisco Rebello, entre outros, jovens actores e dramaturgos acolitados a um ensaísta de renome (Gino Saviotti), o Teatro português começa a abrir-se a novos horizontes e a outras preocupações estéticas. Nesse espaço foi possível ver representadas peças de Rebello, Vasco Mendonça Alves, Branquinho da Fonseca, Pedro Bom, Alves Redol (aí se estreia a sua peça Maria Emília) e Rodrigo de Melo, dramaturgos que nessa função encontravam um ambiente propício à criação cénica dos seus textos. Mas foi fogo-fátuo. Primeiro, a censura, com o seu habitual cerco castrador a tudo o que ressumasse laivos de modernidade e inteligência, depois, as sempre eternas dificuldades económicas impedindo o estabelecimento de um projecto continuado e duradouro.

Em 1947, começam a aparecer textos ensaísticos na recentemente criada revista Vértice, de Coimbra, nomeadamente sobre o teatro de Frederico Garcia Lorca. E é nessa revista que Luís Francisco Rebello se refere, com entusiasmo, ao teatro de Armand Salacrou e à sua peça Les nuits de la colére. Também Joaquim de Oliveira se referia, na Vértice, «à situação catastrófica do teatro português» desses anos 1940, defendendo a criação de um movimento reformador que conferisse ao teatro a sua «verdadeira missão», defesa que hoje, e posta nestes termos, face à boçalidade e ignorância com que a actual maioria PSD/CDS trata as questões da Cultura, nos soa estranha e algo bizarra. Mas foram preocupações similares que levaram à criação, em Paris, do Teatro Nacional Popular, experiência da qual o teatro, tal como o entendemos, ainda hoje é herdeiro.

Anos volvidos, finais de 1950, no Porto, António Pedro iniciava um dos mais duradouros e profícuos projectos teatrais do século XX, com o Teatro Experimental do Porto. Um intelectual vindo das fileiras ideológicas do salazarismo, das hostes do dadaismo luso, mas convertido – após uma estadia em Londres – aos ideais socializantes, nesse Portugal possível, no dizer de Ruy Belo, propunha um modo outro de entender o Teatro e de no-lo dar a ver. Num pequeno estúdio, com meios ínfimos, António Pedro encenou Torga, Santareno, Rebello, Francisco Ventura, António José da Silva, Romeu Correia, a par da grande dramaturgia europeia e anglo-saxónica: de Steinbeck, a Hugo Betti, de O’Neill, a Oscar Wilde, de Miller a Pirandello. O TEP foi, em termos nacionais, a grande escola de teatro, um mundo aberto à experimentação e às novas tendências que então afloravam e que iam de Coupeau a Stanislavsky.

A primeira tentativa de montagem da peça de Alves Redol, Forja, escrita em 1947, partiu do actor/encenador Rogério Paulo que, juntamente com um grupo de grandes nomes do nosso teatro, tentou encenar o texto, em 1960, no palco do então Teatro Avenida. Intenção que a censura frustrou. A estreia desta tragédia do autor de Fanga viria a ter lugar por um grupo de amadores do Buzi (Moçambique), dirigidos por Salvador Rego o qual, em 1965, a apresentou no Festival de Teatro de Manica e Sofala.

No longo Prefácio que, em Abril de 1966, Alves Redol escreveu para a edição do volume Teatro I (que incluía as peças Forja e Maria Emília) o autor explica o profundo significado social e político desse magnífico texto: A forja desta tragédia é Hiroxima, tão distante e tão perto de cada um de nós. Nela arderam homens como meus tios se queimaram em pequena forja de ferreiro, todos sacrificados à mesma mão incendiária que os devorou.1

Com organização, prefácio e notas de Miguel Falcão, o livro Teatro – Textos Publicados e Inéditos, dá à estampa o conjunto da produção dramática de Alves Redol. O organizador situa a obra de Redol no contexto mais largo do neo-realismo, percorrendo o historial cívico e criativo do autor, fazendo-o de forma pedagógica e informada, inventariando a sua vasta produção literária, acrescentando pistas de leitura e de pesquisa que nos parecem úteis e necessárias, não apenas para o estudo específico do nosso neo-realismo, mas abordando com acuidade e sentido crítico as próprias condições em que o Teatro português tem sobrevivido e os limites que hoje, face às derivas neoliberais, o tolhem e limitam.

O Teatro, como Redol e os seus pares o entendiam, deverá ser um jogo, um jogo levado às suas extremas coordenadas conflituais, expressando a própria condição do homem – incerta e vária. E será, segundo Dullin, o transbordar da imaginação sobre a vida que revela os homens a si mesmos. Roger Vaillant, no seu ensaio Expériense du Drame afirma que de todas as criações do homem, o espectáculo teatral é o que mais se parece com um organismo vivo. E essa componente, a Arte Viva que o Teatro é, só se realiza através da montagem cénica de um texto. É essa representação das dinâmicas, que profundamente estão implantadas na vida, que tem faltado à dramaturgia portuguesa. É necessário que o Teatro feito por autores portugueses passe do livro, do papel, deixe de ser um pré-texto, e se implante no corpo, na voz dos actores; cresça e se transfigure nas tábuas de um palco: só dessa forma, a Vida que os textos expressam se cumprirá inteira e o jogo se estabelece.

Teatro – Textos publicados e inéditos, de Alves Redol – Prefácio, Organização e Notas de Miguel Falcão – Ed. Imprensa Nacional – Casa da Moeda/2013

1Alves Redol, Teatro I, 2ª. edição, p.32, Lisboa, 1970, |Publicações Europa-América\




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