Uma política assassina
A notícia sobre uma doente com cancro que esperou dois anos por uma colonoscopia e que, por esse facto, está agora confrontada com um cancro cujas dimensões o tornam inoperável – situação que podia ter sido evitada caso o exame tivesse sido realizado quando, após vários rastreios, surgiu uma análise positiva –, trouxe para primeiro plano, mais uma vez, a discussão em torno das opções políticas que estão a ser feitas no sector da Saúde.
“Os médicos estão hoje condicionados na sua autonomia de decisão”
Não tivesse sido mediatizado e este caso seria mais um, entre muitos outros, cujo conhecimento ficaria limitado apenas ao universo familiar da doente. A natureza do caso e a profunda indignação que causou na opinião pública fez com que os responsáveis por esta situação – que normalmente, sobretudo quando se trata de assumirem responsabilidades, se escondem por detrás de um muro de silêncio – se tenham multiplicado em declarações procurando justificar o injustificável, «sacudir a água do capote» e anunciar inquéritos, cujo objectivo é sempre o mesmo, passar a responsabilidade para o elo mais fraco do sistema. Até podemos adiantar desde já o resultado final do inquérito que, por estas ou outras palavras, apontará para uma conclusão do tipo: os serviços não cumpriram o protocolo estabelecido para situações como a que ocorreu no Amadora/Sintra.
Contudo, há uma novidade importante neste caso. Pela voz da presidente da Associação Nacional dos Gestores Hospitalares, os portugueses ficaram a conhecer que a Lei dos Compromissos, associada aos cortes de centenas de milhões de euros nos orçamentos dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, tem levado os hospitais a atrasarem cirurgias, exames, consultas, tratamentos e a entrega de medicamentos, em nome de uma opção imposta pelo Governo, com que os gestores procuram defender-se de possíveis penalizações financeiras e jurídicas, no plano individual. Este é um problema cuja origem ultrapassa em muito o facto de termos como ministro da Saúde um especialista em cobrança de impostos, insensível aos problemas das pessoas.
O que aconteceu a esta doente é o resultado de uma política de Saúde que, nos últimos anos, foi marcada por um acentuado desinvestimento no SNS, gerador de diversos constrangimentos que colocam em causa a eficácia do desempenho dos estabelecimentos públicos de Saúde e, progressivamente, dificultam o acesso dos utentes aos diversos serviços. Ao mesmo tempo, o Governo impõe a aplicação da Lei dos Compromissos na Administração Pública. A sua aplicação nos hospitais públicos significa o abandono do tratamento adequado dos doentes.
O problema está na política
É a missão dos hospitais que está em causa, exercendo ainda, uma pressão absolutamente inaceitável sob os decisores hospitalares, pois estarão confrontados com a seguinte decisão: ou cumprem uma lei implacável que penaliza os doentes e quem estiver do lado destes, ou fazem o que é necessário para os doentes terem acesso aos cuidados de Saúde que necessitam e, por esse facto, serão penalizados. É sintomático que numa linha de redução de custos, a ARS elabore um perfil do médico onde é registado o número de exames que cada um manda fazer, medida que aparece mais nos cuidados primários, mas também nos hospitais. Aquilo que parece ser uma medida parar parar com os excessos, ou mesmo impedir algumas irregularidades, acaba por condicionar fortemente os médicos na sua autonomia e dar cobertura a uma política restritiva.
Não vale a pena virem agora, à pressa, apresentar soluções de última hora, porque o problema é de fundo e, por isso, só terá solução quando este Governo e esta política forem derrotados. Da nossa parte, não calaremos a indignação e a revolta e reafirmamos a acusação de que este Governo tem para a Saúde uma política assassina que condena à morte antecipada milhares de portugueses.
Ao contrário do que o Governo afirma, o caminho que escolheu não é uma inevitabilidade; nem é verdade que não existam recursos suficientes para garantir o acesso aos cuidados de Saúde através de um instrumento essencial que é o SNS. A situação que hoje se vive neste sector e a sua previsível evolução no curto prazo não se pode desligar de uma estratégia global de empobrecimento do País e dos portugueses, sustentada politicamente no pacto de agressão, mas também no ajuste de contas que está ser perpetrado por parte da direita mais reaccionária com esta que é uma das mais importantes conquistas de Abril: o direito à Saúde.
Milhões de portugueses já têm hoje muitas dificuldades em aceder aos cuidados de Saúde. Muitos já não têm mesmo acesso aos cuidados de que necessitam em tempo útil. Só com um Serviço Nacional de Saúde de carácter público, universal e gratuito para todos é possível assegurar aos portugueses os cuidados de Saúde de que necessitam e acabar de vez com situações como a que ocorreu no Amadora/Sintra.