Seattle, cidade operária

António Santos

Há noventa anos que a Boeing tem a produção em Seattle, no Estado de Washington. Hoje são trinta e um mil operários a laborar ao mesmo tempo, mas todos os pais e avós sabem, até já foram mais, muitos mais. São muitas gerações a acordar às quatro da manhã para cumprir turnos de dez horas a fazer aviões, a dar tudo àquela empresa, dizem sempre, e a identidade de Seattle é indissociável desse orgulho. Não é só em Seattle, claro. A ligação das cidade às suas fábricas é tão profunda que provavelmente as raízes operárias de Seattle acariciam as de Viana do Castelo ou de Almada. É que todos em Seattle têm um primo, um amigo ou um avô que trabalhou ou trabalha para a Boeing e dantes, quando se falava da fábrica, os cantos dos lábios desenhavam curvinhas de alegria. Dantes era assim. Agora não.

Quem ler as notícias que nestes dias dão à estampa sobre a Boeing pode não compreender porque cismam assim os corações produtores. Em 2013, os lucros da empresa bateram o recorde histórico dos 3.9 mil milhões de dólares voltando a consagrar-se como líder mundial dos fabricantes de aviões. E como se o negócio não pudesse correr melhor, o Estado de Washington decidiu premiar a Boeing com um programa de isenção fiscal no valor de 8.7 mil milhões de dólares ao longo dos próximos 16 anos. A maior isenção fiscal da história dos EUA colheu o apoio de republicanos e democratas, afinal havia que acalmar o deus do mercado, alimentar condições de competitividade atractivas para as empresas, fomentar a criação de postos de trabalho...

Mas surpresa das surpresas os milhões extra que a Boeing poupou em impostos não investiu em novas fábricas nem novos empregos (a liberdade económica é mesmo assim!). Com os dinheiros que pertenciam ao Estado, pôs em marcha uma colossal manobra de recompra das suas próprias acções, estimada em 10 mil milhões de dólares, e à elevação dos dividendos em 50%. O preço das acções subiu mais de 80% e o deus-mercado rejubilou. Em entrevista à Reuters, o CEO Jim McNerney , justificou os excelentes resultados financeiros com a sua «confiança no futuro», que lhe valeu um bónus anual de 27.5 milhões de dólares, um aumento de 20%. Mas na verdade a fórmula secreta da Boeing para o sucesso depende de uma outra coisa: a exploração despudorada dos seus trabalhadores.

Apesar dos lucros fabulosos, os trabalhadores levaram como recompensa uma ameaça: ou aceitavam cortes nas pensões e o fim de muitos direitos ou a Boeing deslocalizava a produção do novo modelo 777X para outro Estado, pondo em risco milhares de postos de trabalho. O contrato de trabalho proposto incluía o fim das pensões pagas pela empresa (na prática um corte de 16%), a redução em 75% nos aumentos salariais, o aumento do preço dos serviços de saúde para o dobro e para o triplo, a transferência dos fundos de reforma para investimentos altamente arriscados e a proibição expressa de greve.

A pedagogia da desilusão

A Associação Internacional dos Maquinistas (AIM), o sindicato controlado pelo Partido Democrata, aceitou imediatamente o acordo, mas os operários desobedeceram e chumbaram-no em referendo. Então, no passado dia 4 de Janeiro e após uma operação de cosmética ao contrato original e no quadro de uma poderosíssima campanha de medo e manipulação, os patrões e a AIM forçaram uma nova votação. Os meses de intimidação e chantagem produziram o efeito pretendido: desta vez os trabalhadores estavam assustados e não conheciam bem o que estava a ser votado. A crosta bruta soterrou a ideia. O novo contato foi aprovado por 51% contra 49% dos votos e apesar dos protestos dos trabalhadores que acusaram a AIM de fraude eleitoral não se permitiu uma recontagem.

Em entrevista a todos os meios de comunicação social os trabalhadores manifestavam a sua desilusão com o sindicato e prometiam continuar a luta pelos seus próprios meios. As televisões nacionais mostravam imagens de trabalhadores que se abraçavam e choravam de tristeza e injustiça. O novo contrato não constitui apenas um empobrecimento feroz para o proletariado de Seattle: representa um retrocesso de setenta anos em direitos arrancados a ferros à burguesia, muitas vezes saldados com vidas de trabalhadores. Mas rapidamente a mágoa se transformou em acção e as lágrimas em organização. Em entrevista à CNN, um operário anunciava que os trabalhadores não iam aceitar o novo contrato. Ainda chorava, é certo, mas prometia lutar até ao fim e vencer. E jurava que da próxima vez que chorar há-de ser de alegria.



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