Inevitavelmente, Mandela
O falecimento de Nelson Mandela foi, como bem se sabe, a notícia que na televisão e fora dela dominou todos os noticiários nos últimos dias da passada semana. Não constituiu, de resto, uma surpresa, bem pelo contrário: desde Julho passado, pelo menos, que a sobrevivência de Mandela não era mais, infelizmente, de que o efeito de métodos de prolongamento artificial de uma vida a que decerto já faltavam todos ou quase todos os atributos invejáveis, e por isso é quase certo que redacções e agências noticiosas já tivessem preparados os trabalhos jornalísticos que sairiam no momento aguardado. Aos ecrãs dos nossos televisores chegaram palavras de pêsames proferidas nos quatro cantos do mundo, numa curiosa unanimidade em relação a um homem que durante largos anos foi arrolado como «terrorista», e consequentemente odiável e odiado por muitos governos e muitos poderes. Também graças à televisão, pudemos ver e ouvir o excerto da intervenção de António Filipe na AR lembrando que em 87, quando Aníbal Cavaco Silva empunhava o leme da nação portuguesa como primeiro-ministro, Portugal foi um dos três estados que na Assembleia Geral das Nações Unidas votaram contra uma proposta reclamando a libertação de Mandela e que seria aprovada pela esmagadora maioria de 129 votos favoráveis. Esse inesquecível dado histórico não obstou, porém, a que o actual Aníbal Cavaco Silva, Presidente da República, expressasse agora as suas condolências com sentidas palavras de homenagem ao falecido e, mais ainda, se mostrasse empenhado em deslocar-se à República da África do Sul para se incorporar nas cerimónias fúnebres, o que aliás, graças à talentosa capacidade de expressão verbal que o caracteriza, afirmou ir fazer «com muito gosto», fórmula que talvez não tenha sido a mais adequada na circunstância.
Uma outra pergunta
Como se viu e ouviu nos nossos televisores, a morte de Mandela deu lugar não apenas a notícias breves, ainda que justificadamente dramáticas, mas também a reportagens, comentários, evocações, pelo que quase inevitavelmente seria hoje o tema destas colunas. Foi unânime e decerto justificada a homenagem àquele homem que vinte e sete anos de prisão não abateram, que liderou um movimento político que acabou por vencer as forças convergentes do ódio, das armas e do medo (pois parece claro que a minoria branca temia, aliás justificadamente, a eventualidade de uma terrível tempestade que sobre ela poderia desabar em consequência de uma sua total intransigência), que pelo menos nas décadas finais da sua vida surgiu mais com a imagem de um homem de pacificação que a de um homem de luta. Ainda assim, porém, as unanimidades entre contrários são sempre intrigantes e suscitam perguntas. Acerca de Mandela, seria tonto e inútil perguntar o que fez ele para desencadear esta unanimidade: a resposta óbvia é que foi o vencedor de uma luta justa e que foi vencedor sem enorme derramamento de sangue, o que está longe de ser pouco. Mas não será inútil nem tonto formular uma outra pergunta, complementar da anterior: o que não fez Mandela para que essa mesma unanimidade se apresente agora tão evidentemente cerrada e viçosa, e a resposta estará decerto na própria República da África do Sul. Tanto quanto se sabe, e quanto a este ponto sabe-se o bastante, Mandela não pôde (ou não o quis suficientemente) eliminar no seu país, ou sequer reduzir de um modo muito substancial, a exploração dos homens por outros homens ou, se quiser uma outra fórmula, eliminar a regra geral de essa exploração ser ainda praticada por uma minoria branca sobre a maioria negra. Assim, com razão ou sem ela, poder-se-á admitir que essa omissão decerto involuntária é que permite a unanimidade na homenagem e nos aplausos provenientes dos quatro cantos do mundo. São aplausos decerto merecidos, nem sequer seria de bom gosto suscitar alguma dúvida quanto a esse merecimento. Mas, à semelhança do que dizem acontecer com as belas, não há unanimidade sem senão. E é saudável que não o esqueçamos.