A agente Marléne
Eu nem estava, na altura e compreensivelmente, a pensar na justeza dos polícias, não poucos, que foram à Assembleia da República chamar a atenção para os problemas da classe. Entrei na esquadra munido de um papel verde a comprovar que o seguro do carro estava ali à mão de ver e em dia, façam favor passem-me para cá os documentos que ontem me apreenderam, ora essa, o carrito é meu, embora não pareça a viatura que horas antes reluzia, agora semi-desfeita por um acelera estapafúrdio que me arrancou a frente dela, respirar fundo, legalidade comprovadamente em dia, toca a marchar, bem me basta confrontos de companhias de seguros e aqui d'el rei se, por meças de resquícios de travões e demais comprovativos, seja eu declarado culpado pelo que declaradamente não fiz.
Nada disso. Eu estava a pensar em mim, nas maçadas todas que um acidente estúpido nos traz, olha que coisa esta, vem um gajo do ano (disse bem: ano) que o neto mais novo acaba de ter a ousadia de fazer para comprazimento de pais, avós e demais convivas e, vai daí, tumba!, um Niki Lauda de trazer por casa abalroa o pequeníssimo sonho de levar a nonagenária mãe a casa no conforto possível que a segunda mão do carro lhe pode proporcionar e, depois, seguir em frente, margem Sul no gps da memória, até à casa que vai sendo paga a custo, companheira ensonada ao lado, valha-nos os deuses que o que apetece é dormir em paz, adeus, dorme bem, até amanhã.
Ou seja: eu não estava nada a pensar nas reivindicações pêéssepês que, de resto, apoio, apenas porque queria sair daquela esquadra com o documento que provaria que o meu carro, comprovadamente, era meu, venha de lá o reboque, se faz favor, a oficina é na morada xis, estamos entendidos, aperto de mão, o senhor é bombeiro voluntário?, obrigado por sê-lo, diálogo inesperadamente fraterno entre o eu paciente e o profissional transportador da atingida viatura até à sua enfermaria de bate chapa.
Foi então que me informaram, de forma castrense, que É no 1.º andar à sua esquerda. Subi ao 1.º andar à minha esquerda e entrei numa sala pejada de secretárias onde pontificava, única, uma mulher declaradamente polícia, se me dão licença bonita, e ao princípio distante, como manda o regulamento. É o senhor Francisco? Sou. Tem documento comprovativo? Tenho. Faça o favor de se sentar enquanto eu preencho uns documentos. Sentei-me.
Abreviando: eu que, de polícias, tenho recordações menos boas desde o tempo em que, não sabendo nada, era mandado dispersar (palavra incompreensível para mim) quando estávamos três putos a jogar à bola na rua onde não passavam carros pela simples razão de que não os havia no bairro (sabíamos lá nós que era 1.º de Maio e que eram proibidos ajuntamentos...); eu que de polícias tinha a noção de uns tipos fardados que me perseguiam na mata de Caselas porque jogávamos hóquei em patins com caneleiras de piteiras a fingir de proteções, e lá vinha o «creme nívea», como chamávamos aos VW em que os «bófias» (designação da época que, evidentemente, agora não utilizo) a impedir-nos o gozo, deparo-me com esta senhora-polícia a dizer Senhor Francisco, tem graça, o seu nome começa pelo nome da sua rua.
E eu Pois é, mas Francisco não me dá jeito, sabe?, É mais Nuno, Porquê? Porque Francisco é um nome bonito que as pessoas traduzem por Chico e aí eu não alinho, Tem razão, Como? Tem razão porque a minha irmã pensou nisso com tempo e só pôs nomes às filhas, minhas sobrinhas, que não pudessem ser ditos de outra maneira, nome é nome, a gente deve respeitar, não é?
E eu: é. E eu a pensar nos polícias que me perseguiam só por querer brincar. E eu a olhar para a agente à minha frente, humana, pessoa de conversa fácil, de entendimento cordial, a preencher formulários de coima, sorriso de mulher aprazível, olha que caraças, sou multado e estou nisto, não que não mereça a multa, mas antes sendo ela, a multa, anunciada pela menina bonita que tenho à minha frente, tudo bem, polícia, orgulho na farda e etc., mas eu enredado na conversa, cedendo a uma realidade nova, olha p'ra mim, sexagenário, a condescender, minto, a gostar, não da multa mas da forma como me é declarada, e ciao, foi um prazer, inesperadamente um olhar desfardado a dizer adeus e a sublinhar, declamando, Senhor Nuno.
E pronto. Um dia destes, quando o carro puder andar por suas próprias rodas, vou levar-lhe flores, agente Marléne. Porque me falou com os vês trocados pelos bês que me trazem recordações de infância dos verões da praia da Aguda paredes meias com a Granja da fidalguia falida e ainda assim ostentando ares de condomínio? Também, que a pronúncia do Norte se colou ao melhor da minha adolescência de amores que permanecerão para sempre imorredoiros depois de ternamente e a seu devido tempo falecidos. Mas, se fosse só isso, seria pouco. Porque, esquecendo-se de me devolver o bilhete de identidade, vitalício e, também ele, tão efemeramente eterno que terá de descambar num qualquer apequenado cartão de cidadão, me ligou de pronto, Senhor Nuno, peço desculpa, não lhe devolvi o seu bilhete de identidade. E eu: não tem mal, ainda estou aqui mesmo à frente da esquadra, logo depois a ouvir Não se incomode, eu desço e levo-lho já, e os dois a correr pelo passeio e a encontrarmo-nos a meio do percurso dele, ela Aqui tem, desculpe, são muito papéis, e eu Eu é que lhe agradeço, e ela Ora essa, porquê, e eu Porque a senhora é muito bonita e, já agora, pude olhar para si outra vez, e ela Obrigado, e eu Adeus, e depois a pensar que os, obrigatoriamente e agora também as, polícias foram à Assembleia da República dizer que mudar para melhor é possível.