A cruzada da UE
O etnocentrismo é um conceito desenvolvido na antropologia e significa uma visão de mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os grupos são pensados e sentidos através dos nossos valores e modelos, acreditando na supremacia destes em relação aos demais. É um conceito já discutido há mais de meio século, desmistificando as visões absolutizantes da realidade social.
Os principais decisores das políticas na UE (a Comissão Europeia, a maioria dos deputados do PE e o Conselho Europeu) passaram ao lado de tal reflexão e insistem, de forma arrogante e prepotente, na imposição desesperada do «seu» modelo de democracia – evidentemente, um modelo de classe – da sua leitura da realidade social, dos «valores» (como o mercado único, por exemplo) que exigem que os outros (neste caso, a maioria das pessoas) sintam como seus.
Se a imposição das ideias e ideologias teve já várias formas na história, a cruzada europeia utiliza, no tempo presente, outros instrumentos (diga-se pouco subtis). O programa «Europa para os Cidadãos», aprovado pelo PE na passada terça-feira – com os votos favoráveis dos deputados europeus do PSD, CDS, PS e Rui Tavares – é um exemplo acabado desta missão desesperada.
Este programa serve, exclusivamente, para tentar convencer as pessoas de que o projecto da União Europeia é bom para elas. Mesmo que sintam que a UE contribui para a retirada dos seus direitos, mesmo que não se identifiquem com o projecto, a UE decidiu que gastará 215 milhões nos próximos sete anos para convencer e obrigar as pessoas a sentirem, passo o pleonasmo, um sentimento de pertença e que sintam os valores deste projecto de integração capitalista que é a UE. É uma aberração querer-se impor uma identidade. Etimologicamente, identidade é a essência do ser. Tem-se ou não uma identidade. O programa define como um dos seus objectivos «contribuir para a compreensão da União por parte dos cidadãos e fomentar o seu sentimento de pertença a uma Europa unida na sua diversidade, através da memória, tendo por objectivo o desenvolvimento de um sentido de história comum». Para o concretizar, financiará iniciativas e projectos «da sociedade civil e das pequenas e médias organizações com uma ligação clara à agenda política europeia». Traduza-se, com uma ligação à agenda ideológica da UE.
Vinte e cinco por cento do financiamento deste programa são dedicados à Vertente 1 – designada oficialmente como «Promoção da memória da história europeia e desenvolvimento de um sentimento de identidade europeia» – na prática, consagrada à propaganda anticomunista que, aliás, o Parlamento opinou neste relatório que deveria ser reforçada em relação ao programa antecessor.
Nesta vertente financiar-se-ão, dizem, «debates/estudos e intervenções sobre os momentos decisivos da história europeia e da integração europeia, nomeadamente para manter viva a memória dos crimes cometidos durante todas as ditaduras da história moderna da Europa, como o nazismo, o fascismo e os regimes comunistas totalitários, incluindo o estalinismo, com o objectivo final de preservar a coexistência pacífica na Europa».
Sim, haverá financiamento para debates, estudos, iniciativas, institutos de cultura e história… desde que estes se comprometam com resultados alinhados com a leitura histórica do capitalismo monopolista. É, sem dúvida, a instrumentalização da ciência. É a falsificação da realidade histórica, equiparando fascismo com comunismo, tentando criminalizar e ilegalizar não apenas os movimentos comunistas mas todos os que rejeitam este sistema, branqueando o nazi-fascismo, ocultando a natureza de classe do fascismo e ocultando que o anti-fascismo foi a luta pela qual milhares, milhões de comunistas deram a sua vida.
Como dissemos em anterior artigo, o grande capital tudo fará para impor e absolutizar o conceito de «democracia» que mais lhe interessa, não vão os trabalhadores e os povos descobrirem que existem alternativas a este e que podem construir o seu próprio projecto democrático.