Ontem
Como alguns outros, não me atrevo a escrever que como muitos outros, eu já terei visto aquele documentário de Maria Júlia Fernandes (imagens de Carlos Oliveira, som de António Garcia) sobre os dias de brutalidade e terror vividos em Dezembro de 46 na aldeia de Cambedo da Raia, a um passo da Galiza. Tê-lo-ei visto, decerto, mas esquecera-o, e só o revi agora, na passada sexta-feira, graças à discreta mas afinal eficaz chamada de atenção para a sua retransmissão pela RTP2, inserta porventura por distracção de alguém na página «Ficar» do jornal «Público». O caso de Cambedo foi mais um entre os vários episódios que integraram o quadro da cumplicidade activa do fascismo de Salazar com a barbárie fascista de Franco, mas creio que a memória colectiva, se é que de memória colectiva aqui se pode falar, quase só reteve os factos ocorridos na fronteira Leste, designadamente na raia alentejana. É claro, e nunca será excessivo recordá-lo, que para esse esquecimento muito contribuiu a obstinada recusa da Radiotelevisão Portuguesa em cumprir o seu dever de informação aos portugueses quanto à verdadeira face do salazarismo nos seus traços mais repugnantes, e não são pontuais actos de cidadania e coragem como a feitura do documentário de Maria Júlia Fernandes que compensam esse continuado crime da operadora estatal de televisão. É, de resto, um crime a que até já se habituaram os que não esqueceram, os que bem sabem que se trata de um crime sem princípios mas com fins, uma estratégia que se constituiu em sementeira que está agora a florir numa desenfreada operação de branqueamento do fascismo português e de quase canonização política do homem que a moderada Sophia de Mello Breyner chamou de «abutre» num poema obviamente pouco citado.
O refúgio óbvio
Terminada a Guerra Civil de Espanha desencadeada pelo golpe militar de Franco contra o governo da República que emergira de eleições «livres e democráticas», como hoje se diria, foram diversos os grupos que em diversos lugares de Espanha se obstinaram talvez não tanto no prosseguimento de um combate sem quaisquer horizontes de vitória quanto na defesa da sua mera sobrevivência. Na verdade, é uma verdade histórica hoje indiscutível e indiscutida que os fascistas espanhóis tinham por regra o assassínio sumário dos que se lhes rendiam, prática de que houve abundantes testemunhos do lado português, tantos e tão cruéis que deles ainda guardam memória muitos portugueses então crianças ou muito jovens, hoje a caminhar para o desaparecimento por força daquilo que Álvaro Cunhal designou lúcida e corajosamente por «lei da vida». Também na Galiza, próximo da fronteira portuguesa, essa busca de sobrevivência aconteceu entre os defensores da República, e tanto mais que nunca a linha fronteiriça implicara uma separação de facto entre comunidades galegas e portuguesas. Na verdade, entre povoações de um e de outro lado da fronteira sempre houvera intercâmbio de estimas e fraternidades quotidianas, até de parentescos, e, assim, aconteceu o que de facto era inevitável: que resistentes foragidos procurassem um refúgio óbvio no lado português da fronteira e pontualmente tentassem mais tarde o regresso ao seu país. Terá sido assim até 46. Até que, a poucos dias do Natal desse ano, forças militares e policiais portuguesas e espanholas cercaram Cambedo da Raia, bombardearam e mataram, prenderam inteiras famílias portuguesas, crianças incluídas, e tudo isto com o que porventura mais pode chocar quem se interesse por questões relativas à comunicação social: a cobertura prestada por uma intensa campanha de mentiras e calúnias que «informava» os portugueses de que Cambedo estaria nas mãos de «bandoleiros», «salteadores» e «bandidos» contra os quais toda a violência se justificaria. Foi um acto de cumplicidade sem precedentes na intensidade e na desvergonha, nigérrima nódoa no currículo já muito manchado (mas felizmente também muito redimido por inúmeros casos de resistência e coragem) da imprensa portuguesa durante o salazarismo. E foi à denúncia desse crime que a repetição de «Cambedo», documentário, regressou agora. Sem que, estou certo, a esmagadora maioria dos telespectadores tivesse dado por isso.