A dívida: quem quer capitalismo paga-o!

Vaz de Carvalho


1 – A dí­vida e os al­moços grátis

Quando ou­vimos a di­reita pro­clamar que temos de honrar os «nossos» com­pro­missos e pagar as «nossas» dí­vidas, vem-nos à lem­brança a res­posta que a rainha Maria Pia (1), es­posa de D. Luís, deu a um mi­nistro ao ser ins­tada acerca dos ex­cessos do seu luxo: «Quem quer rai­nhas, paga-as!».

A questão da dí­vida na­ci­onal e o seu agra­va­mento têm causas es­tru­tu­rais que ra­dicam no cres­cente dé­fice pro­du­tivo do País e que foi par­ti­cu­lar­mente acen­tuada com as po­lí­ticas do BCE e dos me­ca­nismos do euro, que re­du­ziram os países mais vul­ne­rá­veis à ser­vidão pela dí­vida. Donde, quem quer este BCE, este euro, esta UE da es­pe­cu­lação fi­nan­ceira, dos mo­no­pó­lios e trans­na­ci­o­nais, paga-os! O pro­blema é que quem não quer, também os está a pagar!

Re­pare-se no se­guinte: entre 1999 e 2012 Por­tugal pagou de juros de dí­vida 65 716,8 mi­lhões de euros, a soma dos dé­fices do Es­tado foi de 112 117 mi­lhões, porém a dí­vida pú­blica passou de 58 657,1 para 204 485 mi­lhões de euros (mais 145,8 mil mi­lhões!). Ou seja, quanto mais se paga mais se deve. (INE – Contas na­ci­o­nais). Em 2012 os juros re­pre­sen­taram nas Contas Pú­blicas 69% do dé­fice do Es­tado; em 2013 segundo pre­vi­sões do go­verno no OE atin­gi­riam cerca de 100% do dé­fice do Es­tado.

É este o pro­cesso posto em prá­tica pelo im­pe­ri­a­lismo para a ex­torsão de rendas fi­nan­ceiras e apro­pri­ação da pro­pri­e­dade pú­blica (pri­va­ti­za­ções). A dí­vida ex­terna pú­blica dos países em de­sen­vol­vi­mento era, em 1970, de 40 mil mi­lhões de dó­lares, em 2009 atingia 1460 mil mi­lhões, porém no mesmo pe­ríodo foi pago como ser­viço de dí­vida 4529 mil mi­lhões de dó­lares. Isto é, re­em­bol­saram 98 vezes o que de­viam em 1970, mas a dí­vida é 32 vezes maior, tudo isto em dó­lares(2).

A dí­vida é a forma de pro­por­ci­onar os fa­mosos «al­moços grátis» à fi­nança e mo­no­pó­lios, que os pro­pa­gan­distas do sis­tema dizem não serem pos­sí­veis para tudo o que é so­cial. O BCE impõe que os es­tados se fi­nan­ciem junto da banca pri­vada; esta re­cebe do BCE a 0,5% de juro, e em­presta aos es­tados a um juro que de­pende tanto da es­pe­cu­lação como de es­tra­té­gias dos países do­mi­nantes. A Ale­manha obtém juros a 0,5 ou a 1%, mas Por­tugal como muitos ou­tros países obtêm a 5, 6, 7% e mesmo mais.

Para termos uma ideia de como este me­ca­nismo actua lem­bremos o pro­pa­lado «su­cesso» da ida aos mer­cados» (!). Pe­diram-se 3000 mi­lhões de euros, com juro de 5,68%, a 10 anos: re­ce­bemos 3000, pa­gamos 5212 mi­lhões. Note-se: com uma taxa de 5,7% em 10 anos paga-se mais 74%; com uma taxa de 7% o em­prés­timo du­plica. Com­pre­ende-se também o dogma do BCE de não querer in­flação.

Pela via da dí­vida a troika impõe con­di­ções equi­va­lentes à sub­missão dos povos por meios mi­li­tares, obri­gando as pes­soas a per­derem di­reitos, en­tregar partes cres­centes do seu ren­di­mento para ali­mentar a es­pe­cu­lação, en­tregar ao des­ba­rato pa­tri­mónio e ser­viços pú­blicos e, fi­nal­mente, em nome de cum­prir os «nossos com­pro­missos», pre­ten­dendo re­duzir a de­mo­cracia a mera for­ma­li­dade sem di­reito à es­colha de al­ter­na­tivas.

2 - O ajus­ta­mento es­tru­tural

Os co­men­ta­dores são mo­bi­li­zados para pro­pa­gan­dear a ideia de que a aus­te­ri­dade é a con­dição para o «ajus­ta­mento es­tru­tural» e que o pa­ga­mento das dí­vidas irá pro­por­ci­onar cres­ci­mento fu­turo. Falso. É o ca­minho do co­lapso eco­nó­mico e so­cial. Aquela pro­pa­ganda serve pre­ci­sa­mente para manter a su­jeição pela dí­vida ex­cluindo a aná­lise de como a ri­queza é criada, ad­qui­rida e dis­tri­buída e de que forma afecta o de­sen­vol­vi­mento.

Umas contas sim­ples ajudam-nos a com­pre­ender a na­tu­reza do pro­blema. Em 2012 o en­di­vi­da­mento do Es­tado era 124% e o dé­fice 6,4% do PIB. Com as ac­tuais po­lí­ticas, re­duzir a dí­vida pú­blica para 80% do PIB e o dé­fice para 3% im­pli­caria (man­tendo o mesmo valor da dí­vida, ou seja, sem novos em­prés­timos) ga­rantir um cres­ci­mento do PIB de 54,5% (3), por­tanto um cres­ci­mento médio ao longo de 10 anos da ordem dos 4,4 a 4,5%. Quanto ao dé­fice, mesmo com este cres­ci­mento, seria ne­ces­sário re­duzir-se em 27,8% através da di­mi­nuição da des­pesa e/​ou au­mento da re­ceita.

Se fi­zermos o mesmo exer­cício para o ab­surdo que é o Me­ca­nismo Eu­ropeu de Es­ta­bi­li­dade (aplau­dido pelos par­tidos da troika como «regra de oiro») que exige sob a ameaça de «pe­na­li­dades» (!) um en­di­vi­da­mento pú­blico li­mi­tado a 60% do PIB e 0,5% de dé­fice, teria de ser ga­ran­tido um cres­ci­mento de 7,5% ao longo de 10 anos (ou de 3,6% ao longo de 20 anos) e uma re­dução de dé­fice de 84%!

Mas cres­ci­mento como com as po­lí­ticas da troika?! Os «cortes na des­pesa» feitos pela di­reita in­cidem sobre sa­lá­rios, pres­ta­ções so­ciais e in­ves­ti­mento, pro­vo­cando a re­cessão, dei­xando in­to­cados os juros, a tri­bu­tação sobre rendas fi­nan­ceiras e mo­no­po­listas, além das PPP, SWAP, etc., que blo­queiam o cres­ci­mento.

3 – Duas es­co­lhas

O prof. Mi­chael Hudson cita o eco­no­mista M. Flürs­cheim (1844 – 1912) re­fe­rindo uma ale­gada afir­mação de Na­po­leão, que dizia não en­tender como «o monstro do juro não tinha ainda des­truído toda a hu­ma­ni­dade», ao que Flürs­cheim co­menta: «Teria assim sido há muito se a ban­car­rota e a re­vo­lução não ti­vessem sido os an­tí­dotos». Acres­centa Hudson: «E este é jus­ta­mente o ponto. Al­guma coisa tem de ser feita quando a ma­te­má­tica dos juros ul­tra­passa a ca­pa­ci­dade da eco­nomia pagar» (4).

A aus­te­ri­dade torna o pa­ga­mento da dí­vida cada vez mais pe­sado; os in­te­resses dos cre­dores so­bre­põem-se aos da eco­nomia na­ci­onal, fi­cando as na­ções de­ve­doras e mais de­pen­dentes, su­por­tando juros es­pe­cu­la­tivos (com o ar­gu­mento de que a eco­nomia do país não lhes dá ga­ran­tias!), em­pur­radas para ex­por­ta­ções com baixos sa­lá­rios e baixa tec­no­logia ao ser­viço das trans­na­ci­o­nais (é o mito de «captar in­ves­ti­mento es­tran­geiro») e pro­mo­vendo a emi­gração dos tra­ba­lha­dores mais qua­li­fi­cados.

Os nú­meros que apre­sen­tamos servem para nos dar uma ideia de como a dí­vida nas con­di­ções da troika é im­pa­gável e como as po­lí­ticas da UE e do euro estão apenas pre­vistas para ga­rantir ren­di­mentos às oli­gar­quias, «custe o que custar». Tudo isto prova como as re­fe­rên­cias ao «cres­ci­mento e em­prego» ou «não se per­derem os sa­cri­fí­cios já feitos», não passam de reles em­bustes.

Nú­meros que re­velam também como são justas e pa­trió­ticas as po­lí­ticas de re­ne­go­ci­ação de dí­vida nos seus mon­tantes, prazos e juros e a re­jeição do pacto de agressão da troika, que o Par­tido de­fende e tem rei­vin­di­cado.

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1 – D. Maria Pia de Sa­boia (1847-1911), rainha de Por­tugal, fazia questão de usar ves­tidos novos todos os dias ex­pres­sa­mente vindos de Paris. Esta se­nhora ficou também co­nhe­cida como «O Anjo da Ca­ri­dade». Eis o gé­nero de ca­ri­dade (com muitos «po­bre­zi­nhos») que a di­reita aprecia.

2 – cadtm.org, «Les chi­fres de la dette 2011»

3 – Dí­vida em 2012 / 0,8 = PIB ne­ces­sário

4 – «The Bubble and beyond», Mi­chael Huson, Ed. ISLET, p. 97.




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